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Todos diferentes, todos iguais

Baudolino chega a Pndapetzim, em Baudolino, de Umberto Eco (1) (2)

(…)

Mãos e braços eram-no sem dúvida, os do ser que vinha ao seu encontro. Quanto ao resto tinha uma perna, mas era a única. Não que fosse coxo, porque aliás aquela perna se ligava naturalmente ao corpo como se nunca tivesse havido lugar para a outro, e com o único pé daquela única perna corria com muita desenvoltura, como se desde a nascença estivesse habituado a mover-se assim.(…)
Quando o ser parou parou diante deles, viram que o seu único pé tinha o dobro do tamanho de um pé humano, mas era bem formado, com unhas direitas, e cinco dedos que pareciam todos o dedo grande, grossos e robustos.
Quanto ao resto, este tinha a altura de um rapazito de dez ou doze anos, ou seja, chegava à cintura de um deles [Baudolino e os seus amigos], tinha uma cabeça bem feita, com um curto cabelo amarelo eriçado, dois olhos redondos de boi afectuoso, um nariz pequeno e redondinho, uma boca larga que lhe chegava quase às orelhas, e que descobria, no que indubiamente era um sorriso, uma bela e robusta dentadura. Baudolino e os seus amigos reconheceram-no logo, por dele terem lido e ouvido falar tantas vezes: era um ciápode(…).

(…)

Passados poucos instantes os fetos abriram-se e apareceu outro ser. Era muitíssimo diferente do ciápode, e por outro lado, ao ouvirem nomear um blémio os nossos amigos já esperavam o que viram. A criatura, com ombros larguíssimos e portanto muito atarracada, mas de cintura fina, tinha duas pernas curtas e peludas e não tinha cabeça, nem de resto pescoço. No peito, onde os homens têm os bicos dos seios, abriam-se dois olhos amendoados, vivíssimos e, por baixo de uma ligeira dilatação com duas narinas, uma espécie de furo circular, mas muito dúctil, de modo que quando se pôs a falar o fazia assumir várias formas, de acordo com os sons que emitia.(…)

(…)

[Baudolino fala ao ciápode, Gavagai] — Agora ouve. Ouvi-te dizer há pouco que os ciápodes não são amigos dos blémios. Não pertencem ao reino ou à província?
— Oh, não, eles como nós é servos do Presbyter, e como eles os pôncios, os pigmeus, os gigantes, os panócios, os sem-língua, os núbios, ou eunucos e os sátiros-que-nunca-se-vêm. Todos bons cristãos e servos fiéis do Diácono e do Presbyter.
— Não sois amigos porque sois diferentes?— Perguntou o Poeta [amigo de Baudolino].
— Como diz tu diferentes?
— Bem, no sentido que tu és diferente de nós e…
— Porquê eu diferente de vós?
— Deus santíssimo— disse o Poeta—, para começar tens uma perna só! Nós e o blémio temos duas!
— Também vós e blémio se levanta uma perna tem só uma.
— Mas tu não tens outra para baixar!
— Porquê eu deve baixar perna que não tem? Deve tu baixar terceira perna que não tem?
Meteu-se conciliador o Boidi [amigo de Baudolino]:
— Ouve, Gavagai, deves admitir que o blémio não tem cabeça.
— Como não tem cabeça? Tem olhos, nariz, boca, fala, come. Como faz tu isto se não tem cabeça?
— Mas nunca notaste que não tem pescoço, e depois do pescoço aquela coisa redonda que tu também tens em cima do pescoço e ele não?
— O que quer dizer notaste?
— Viste, reparaste, que tu sabes!
— Talvez tu diz que ele não é todo igual a mim, que minha mãe não pode confundir mim com ele. Mas tu também não é igual a este teu amigo porque ele tem sinal na bochecha e tu não tem. E teu amigo é diferente daquele negro como um dos Magos, e ele diferente daquele com barba negra de rabino.
(…)
Borão [amigo de Baudolino] disse:
— Já basta. Este ciápode não sabe ver uma diferença entre ele e um blémio, tal como nós não sabemos vê-la entre o Porcelli [amigo de Baudolino] e Baudolino. Se pensarem bem, sucede quando nos deparamos com estrangeiros. Entre dois mouros, vós sabeis ver bem a diferença?
— Sim— disse Baudolino—, mas um blémio e um ciápode não são como nós e os mouros, que só os vemos quando vamos à terra deles. Eles vivem todos na mesma província, e ele distingue entre blémio e blémio, se diz que este que acabámos de ver é seu amigo, enquanto os outros não. Ouve-me bem, Gavagai: disseste que na província habitam os panócios. Eu sei o que são os panócios, são gente quase como nós, salvo que têm duas orelhas tão enormes que lhes descem até aos joelhos, e quando faz frio as enrolam ao corpo como um manto. São assim os panócios?
— Sim, como nós. Eu também tem orelhas.
— Mas não até aos joelhos, por Deus!
— Tu também tem orelhas muito mais grandes que as do teu amigo vizinho.
— Mas não como os panócios, com um raio!
— Cada um tem as orelhas que sua mãe fazer a ele.
— Mas então porque dizes que as coisas não correm bem entre blémios e ciápodes?
— Eles pensa mal.
— Mal como?
— Eles cristãos que faz erro. Eles ‘phantasiastoi’. [segue-se explicação da heresia dos blémios]
(…)
— E os panócios?— Perguntou Baudolino.
— Oh, a eles não importa o que faz Filho quando desce em terra. [segue-se explicação da heresia dos panócios]
(…)
— Amigos— disse Baudolino dirigindo-se aos seus companheiros.— Parece-me evidente que as raças existentes nesta província não dão nenhuma importância às diferenças do corpo, à cor, à forma, como fazemos nós que até ao vermos um anão o julgamos um erro da Natureza. E afinal, como fazem de resto muitos dos nossos sábios, dão muita importância às diferenças das ideias sobre a natureza de Cristo, ou sobre a Santíssima Trindade, de que tanto ouvimos falar em Paris. É o seu modo de pensar. Tentemos compreendê-lo, senão perder-nos-emos sempre em discussões sem fim. Está bem, vamos fingir que os blémios são como os ciápodes, e o que pensam sobre a natureza do Nosso Senhor no fundo não nos diz respeito.
(…)
[Disse o Poeta] — Acho que é uma coisa de greculos. Nós no norte estávamos mais preocupados com quem era o Papa verdadeiro e quem era o antipapa, e dizer que tudo dependia de um capricho do meu defunto senhor Reinaldo. Cada um tem os seus defeitos. Tem razão Baudolino, façamos de conta que não é nada connosco e vamos pedir a este que nos leve ao seu Diácono, que não deve ser grande coisa, mas pelo menos se chama João.

(…)

(…) debaixo das árvores estavam sentados, olhando-os cheios de curiosidade, seres de feição quase humanas, que saudavam com as mãos mas emitindo apenas uivos. Eram, explicou-lhes Gavagai, os seres sem língua, que viviam fora da cidade porque eram messalianos [segue-se explicação da heresia dos seres sem língua] (…)
— Quanto ao resto são como vós, não é verdade?— Espicaçou-o o Poeta.
— É como nós quando nós está calados.

[O grupo de Baudolino encontra pigmeus, pôncio, núbios e gigantes na cidade de Pndapetzim, cidade do Diácono João, súbdito do Prestes João ou Presbyter Johannes] (…)

— E destes [dos gigantes] também sois inimigos?— Perguntou Baudolino.
— Aqui ninguém inimigo de ninguém— repondeu Gavagai.— Tu vê eles todos junto vende e compra como bons cristãos. Depois todos torna casa cada um deles, não está junto a comer ou dormir. Cada um pensa como quer, mesmo que pensa mal.
— E os gigantes pensam mal…
—Uh! Pior que os pior! Ele é artoritistas [segue-se explicação da heresia dos gigantes] (…) Mas aqui gente que pensa mal é quase todos, menos ciápodes.
— Disseste-me que nesta cidade também há os eunucos? Eles também pensam mal?
— Eu melhor que não fala de eunucos, demasiado poderosos. Eles não se mistura com gente comum. Mas pensa diferente de mim.
— E à parte o pensamento, são iguais a ti, imagino…
— Porquê qual coisa tem eu diferente deles?
— Mas diabo dum perneta— irritou-se o Poeta—, tu não vais com as fêmeas?
— Com fêmeas ciápodes sim, porque elas não pensa mal.
— E às tuas ciápodes tu metes lá dentro aquela coisa, maldição, mas onde é que a tens tu?
— Aqui, atrás perna, como todos.
— Para além do facto de que eu não a tenho atrás da perna, e acabámos de ver uns tipos que a têm acima do umbigo [pôncios], ao menos sabes que os eunucos aquela coisa não a têm nada e com as fêmeas não vão?
— Talvez porque eunucos não gosta de fêmeas. Talvez porque eu em Pndapetzim nunca ter visto fêmeas eunucas. Pobrezinhos, talvez eles gosta, mas não acha fêmea eunuca e não pode ir com fêmeas de blémios, ou de panócios, que pensa mal?
— Mas já notaste que os gigantes só têm um olho?
— Eu também. Vê, eu fecha este olho e fica só o outro.
— Agarrem-me senão mato-o— disse o Poeta, de faces todas rubras.
— Em suma— disse Baudolino—, os blémios pensam mal, os gigantes pensam mal, todos pensam mal, tirando os ciápodes. E o que pensa este vosso Diácono?
— Diácono não pensa. Ele manda.

fim de citação

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