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Contribuições para o Manifesto pelo Ensino Artístico Especializado da Música

Aos promotores do Manifesto:

Leio com atenção o vosso texto e outros sobre o mesmo tema em vários blogs. Pretendo subscrever o Manifesto que promovem, na qualidade de músico (compositor e intérprete) que fez a sua formação inicial no Conservatório de Música de Aveiro.
Como aluno, assisti a algumas reuniões preparatórias de propostas de reforma do sistema do Ensino Artístico que deram em nada (nos inícios dos anos 90) e fui acompanhando os soluços do processo e a contínua degradação do sistema, por acção e omissão dos diversos intervenientes, conversando com antigos professores e com colegas que entretanto se tornaram docentes.

A minha visão deve, no entanto ser contextualizada. Frequentei, sem completar, o curso supletivo (em saxofone) e, desde os últimos anos no Conservatório, aumentou o meu interesse pelas músicas menos formalizadas e mais afastadas dos Conservatórios: o jazz, a improvisação livre não idiomática e outras músicas de vanguarda não eruditas.
A formação que recebi no Conservatório, quer tecnicamente como instrumentista, quer “artisticamente” como músico num sentido mais geral (análise e técnicas de composição, classes de conjunto, acústica, história da música…) foi fundamental não só na minha carreira profissional (como instrumentista e compositor de bandas sonoras para teatro, principalmente), como na minha formação como pessoa, cidadão e artista. A forma como o percurso no Conservatório me influenciou e me trouxe até ao aqui e agora foi feita de afirmações e negações. Construí-me com e contra aquilo que o Conservatório me deu e é essa a razão pela qual acredito que o Ensino Artístico Especializado da Música é fundamental.

Mas, como devem perceber, apesar de subscrever o vosso manifesto sem reservas, não partilho de todas as vossas opiniões (aquilo que me parecem ser as vossas opiniões, pelo menos). Acredito que vejam nisso uma força maior no vosso documento.

Seguem alguns reparos avulsos e votos de que a vossa luta seja consequente, apoiada e continuada.

MANIFESTO
pelo ensino artístico especializado da música

da condição de músico

1. Ser músico implica um processo de aprendizagem contínuo e inesgotável.
2. A expressão artistística é uma necessidade inerente à condição de músico.
3. O exercício de uma actividade artística requer uma disponibilidade total e incondicional.

Essa “disponibilidade total e incondicional” parece mais uma profissão de fé e retira peso ao facto do exercício da profissão “músico” ter/poder ter um peso económico e um papel social que tem tanto de “funcional” como de artístico.
A “fasquia” técnica que a formação das escolas de ensino artístico especializadas traz ao panorama musical português é responsável por mais do que o dinamismo artístico. O significado e impacto para a indústria musical e do entretenimento e, por essa via para a economia, não deve ser menosprezado num debate que tem tanto de cultural como económico.

do ensino artístico especializado da música

1. Ensinar não é ocupar.
2. Formar não é entreter.
3. Não há regras nem percursos pré-definidos para a formação de um músico.
4. A aprendizagem não pode por vezes ser lúdica.
5. Não se ensina a ser músico, ajuda-se a aprender.
6. Há áreas do saber que implicam a aprendizagem e o exercício de rotinas intensivas que consolidam os recursos adquiridos e sem os quais uma formação mais avançada não pode ser construída e determinados objectivos não podem ser alcançados.
7. A missão do ensino artístico especializado da música de nível secundário deve ser formar alunos aptos a prosseguir os seus estudos a nível superior, independentemente da decisão que tomem.
8. A missão do ensino artístico especializado da música de nível superior deve ser formar alunos capazes de exercer uma actividade artística musical como profissão.

Muito bem. Particularmente o ataque inicial às teorias das ciências da educação. Sem ponta de ironia da minha parte.
Acrescentaria apenas que o exercício da profissão de músico não depende da obtenção dum diploma do ensino superior, pelo que o ensino de nível secundário deve estar adaptado para que os alunos se sintam capazes de um desempenho profissional. Claro que o nível não será o mesmo dum licenciado, mas deverá existir uma preparação para um nível intermédio de exercício profissional no caso dos intérpretes.

do processo de aprendizagem musical

1. O processo de aprendizagem musical requer por parte do formando uma rotina quotidiana, diligente, empenhada e que ultrapassa largamente o âmbito das actividades académicas.
2. Parte considerável da aprendizagem de um instrumento (ou canto) implica o desenvolvimento e controlo de processos psico-motores; ao conjunto destes processos dá-se correntemente o nome de “técnica”.
3. A aprendizagem e assimilação de recursos técnicos implica o exercício individual regular.
4. A orientação do especialista é fundamental em todas as fases do processo de aprendizagem musical, desde o primeiro contacto até à inserção na vida profissional.
5. Na aprendizagem e assimilação de recursos técnicos, a orientação do especialista é fundamental para evitar que estes seja construídos sobre bases frágeis ou não consolidadas.
6. Construir um percurso musical assente em bases frágeis resulta inevitavelmente em momentos de bloqueio que necessitam de processos morosos e complexos para serem resolvidos.
7. Apenas o especialista possui a capacidade de diagnóstico e as ferramentas metodológicas que permitem ao formando definir objectivos, traçar percursos e corrigir problemas.
8. Na aprendizagem e assimilação de recursos técnicos, a orientação do especialista garante que as capacidades do formando sejam optimizadas e que os métodos e estratégias mais adequadas sejam utilizadas na resolução dos seus problemas.
9. A aula individual é uma parte fundamental, incontornável e estruturante da aprendizagem musical.

Não sei se percebo bem esta terminologia do “especialista”. Também não sei se percebo a distinção “instrumento (ou canto)”, já que sempre pensei na voz, musicalmente, como um instrumento. Naturalmente diverso, mas instrumento.
Espero que concordem, como dizem no princípio, e não esqueçam que “não há regras nem percursos pré-definidos para a formação de um músico”. Com essa ressalva, concordo com tudo o que dizem, para quem escolhe um processo “académico” de aprendizagem musical.
Com variantes, outros processos são possíveis e deles resultam exemplos extraordinários.

do aluno do ensino artístico especializado da música

1. O aluno do ensino artístico especializado da música é um indivíduo que procura uma formação musical intensiva e especializada, normalmente expressa sob a forma da aprendizagem de um instrumento, canto e/ou composição.
2. O aluno do ensino artístico especializado da música é consciente que uma formação musical intensiva e especializada constrói-se sobre um trabalho individual e rotinas regulares.
3. Ao aluno do ensino artístico especializado da música devem ser facultadas condições de estudo que permitam desenvolver, potenciar e concretizar a vontade de expressão musical, entre as quais a orientação de especialistas, o acesso a espaços para estudo e apresentação, instrumentos musicais e documentação musical.
4. Ao aluno do ensino artístico especializado da música devem ser dadas condições que permitam compatibilizar os estudos musicais com os estudos gerais, sem prejuízo para a qualidade da sua formação.
5. Ao aluno do ensino artístico especializado da música devem ser dada a possibilidade de escolher entre os regimes de frequência que melhor se adequam ao seu caso particular, sem prejuízo dos objectivos definidos.
6. O aluno do ensino artístico especializado da música pré-superior não pode ter as suas opções de futuro hipotecadas pelo facto de se encontrar neste sistema de ensino.
7. A idade do candidato não deve ser impeditiva do acesso ao ensino artístico especializado da música

Ao aluno do ensino artístico especializado da música assiste o direito de escolher o seu percurso e ser apoiado no seu processo de escolha, considerada a diversidade de carreiras e vocações no mundo da música. De resto, completamente de acordo.

do docente do ensino artístico especializado da música

1. Ser músico é condição indispensável para ser professor de música.
2. A condição de professor do ensino artístico especializado da música não pode nunca implicar o abdicar do exercício de uma actividade artística, sem prejuízo para a formação dos alunos.
3. A condição de artista não pode significar um menor empenho ou responsabilidade para o artista que é docente do ensino artístico especializado da música.

A condição de docente do ensino artístico especializado da música não pode significar um menor empenho ou responsabilidade para o docente que se diz artista. Creio que a dignificação da posição do docente do ensino artístico passa precisamente pela valorização da sua eventual carreira artística, que poderá passar pela limitação do número de horas e/ou estabelecimentos onde lecciona. Sem se dizer isso, poderá denunciar-se alguma hipocrisia neste ponto.
Não deixa de ser igualmente verdade que um conjunto de disciplinas e/ou docentes, de facto, exercem de forma exclusiva e intensiva a profissão de docente e nem sempre de forma prejudicial. A distinção entre as duas formas de estar no ensino artístico deve ser clarificada e assumida com naturalidade.

do estabelecimento de ensino artístico especializado da música

1. O estabelecimento de ensino artístico especializado da música deve ser um lugar onde indivíduos possam encontrar as ferramentas necessárias para construírem o seu percurso individual.
2. O estabelecimento de ensino artístico especializado da música deve possuir condições logísticas mínimas e indispensáveis, como espaços para leccionação e estudo acusticamente adequados, centros de documentação, espaços para apresentações públicas.
3. O estabelecimento de ensino do ensino artístico especializado da música deve ser um lugar onde discentes e docentes possam concretizar projectos de expressão artística.

O estabelecimento de ensino do ensino artístico especializado da música deve ser um lugar que potencie o contacto e os intercâmbios entre a comunidade educativa que alberga e a sociedade. Deve estar aberto à comunidade, deve ter uma atitude de prestação de serviço público na dinamização cultural e sensibilização para a música como arte no seu contexto local. Deve potenciar o contacto com outras áreas artísticas e movimentos cívicos e ser um pólo dinamizador de cidadania, educação e arte.

Espero que possam usar este meu contributo (que publicarei igualmente no meu blog), no contexto da vossa discussão.

Um comentário a “Contribuições para o Manifesto pelo Ensino Artístico Especializado da Música”

[…] diário de bordo Há histórias de crianças que marcam, com migalhas de pão, o caminho que fazem pelos bosques, para poderem voltar a casa… são traídas pelos pássaros. Há histórias de marinheiros que registam as viagens de ida para se guiarem na volta e documentarem a sua glória… são engolidos pelo mar. À nossa volta, acumulam-se os registos do que foi, esperançosos de mudarem o que vai ser… « Contribuições para o Manifesto pelo Ensino Artístico Especializado da Música […]

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