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A Vida Normalmente

Estreou esta terça-feira, na RTP2, A Vida Normalmente, uma série documental de 10 episódios, de Fernanda Câncio e Abílio Leitão. 10 bairros “problemáticos” são vistos/mostrados pelos olhos de quem lá vive “normalmente”, escapando às tradicionais armadilhas da “vitimização” ou da “desculpabilização”. À estreia, dedicada ao Bairro da Abelheira, um bairro de realojamento em Quarteira, seguiu-se um debate num Sociedade Civil “Especial Bairros”, com a presença dos autores do documentário, a jornalista Fernanda Câncio e o realizador Abílio Leitão, da coordenadora operacional da Iniciativa Bairros Sociais do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, Virgínia Sousa, e do Bastonário da Ordem dos Engenheiros, Fernando Santo.

Uma primeira nota vai para a falta de critério de programação da RTP que remete para horas impróprias (o documentário de 30 minutos, ao qual se seguiu o debate, começou depois das 23h00) uma iniciativa que, no contexto actual, justificaria, obviamente, maior visibilidade. Continua sem se perceber porque é que as incursões mais profundas à natureza do que é o serviço publico de televisão ficam reservadas para noctívagos e cuidadosamente “guardadas” no canal que, de nome e, de facto, é o segundo.

Felizmente, apesar disso, não perdi esta estreia e pude ficar a ver o debate até ao fim.

Quanto ao documentário, parece-me de facto interessante o registo-construção duma visão dos “bairros” de dentro para fora, fugindo de abordagens mais correntes e, porventura, mais fáceis, de dar a voz aos técnicos do costume— ora teóricos de tribuna, ora gente de intervenção no terreno— que não podem deixar de estar numa condição de “estrangeiros” relativamente ao “bairro”. A visão “local” ajuda a compreender a natureza das fronteiras que nem sempre são bem entendidas em toda a sua complexidade e, no debate, algumas expressões ilustram essa complexidade: “os bairros de realojamento, mecanismos de inclusão social, funcionam também, como mecanismos de exclusão”, porque “não são cidade”, apesar de “haver um maior sentimento de pertença”, de tal forma que, “quando saem do bairro, as pessoas sentem-se no estrangeiro”, assim como se sente, por vezes, que as incursões da polícia parecem “incursões em território inimigo”.

Percebo também a ideia de procurar, dentro dos “bairros”, exemplos de pessoas que procuram “suplantar as condições de partida” e, simplesmente, ou “normalmente”, viver a sua vida. Estes “bons exemplos” são inspiradores e têm o potencial de humanizar o nosso olhar sobre estes territórios “estrangeiros”, que ora são “problemáticos”, ora “críticos”, ora sujeitos a “intervenção prioritária”… Mas o argumento apresentado de que esta visão é uma pedrada num charco marcado por imagens ora de “vítimas”, ora de “irresponsáveis”, para mim, não faz muito sentido. A verdade é que as “pessoas” que moram nos bairros— os bons, os maus e os vilões— não têm visibilidade no panorama da comunicação social, e os bairros são tratados como realidades uniformes e indistintas, como se não fossem território habitado de toda a diversidade que habita o resto do país. Com estes 10 episódios ficaremos a conhecer algumas das pessoas dos bairros, mas ficaremos a conhecer histórias de superação, de persistência, de preserverança, de sorte, de sucesso relativo. Mas não é verdade que isso sirva para temperar um panorama em que conhecemos já as biografias de quem não conseguiu superar as condições de partida, por não poder, por não querer, por falta de sorte, por…

A verdade é que estes retratos dos bairros, de pessoas dos bairros, pode ter o efeito pernicioso de prolongar uma visão distorcida que já temos desta realidade e dar mais fôlego à ideia de que, quem quer e faz por isso, pode ter uma vida melhor. Os autores do documentário sabem que não é bem assim e disseram-no no debate, mas a opção de construção da série é esta. Não deixa de ser legítima, mas creio que o processo de humanização do nosso olhar sobre os bairros passa por conhecer as pessoas que lá moram: as que, quiçá excepcionalmente, vivem a sua vida “normalmente” e as outras, cujas vidas são, no contexto, tão normais como a de cada um de nós, mas num contexto muito pior. Fico curioso por perceber quão “excepcionais” são os exemplos de vidas “vividas normalmente” e escolhidas para estes documentários e ficaria agradavelmente surpreendido se, com contribuições valiosas como esta, passássemos, como sociedade, a olhar para os “bairros” como sítios onde moram pessoas. É um importante primeiro passo.

Quanto ao debate que, como se perceberá, foi rico, fiquei surpreendido com a presença do Bastonário da Ordem dos Engenheiros num papel que poderia ser exercido, com vantagem, por um Urbanista ou Arquitecto. O Nuno Portas, o Varela Gomes, a Ana Tostões, o Ribeiro Telles, ou até a Helena Roseta (se fôssemos capazes de não confundir o que a pessoa diz com o papel político que desempenha a dado momento) poderiam contribuir com uma visão centrada no desenho e no funcionamento das cidades e do território e dos seus momentos particulares, como são os bairros de realojamento, provavelmente com mais interesse do que o Eng. Fernando Santo, que merece todo o meu respeito. O Nuno Portas, particularmente, por acumular responsabilidades como Urbanista, Arquitecto, Pedagogo e Político e ser um grande comunicador, poderia ter dado outra dimensão ao debate.

Claro que o debate seria ainda mais rico se prolongasse a opção do documentário e desse voz a quem vive nos “bairros”, pondo frente-a-frente o discurso dos técnicos com o discurso de quem tem que viver com as opções dos técnicos.

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