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jazz.pt | report #2: Jazz no Parque 2007

16ª edição do Jazz no Parque

Texto escrito por João Martins, a 09/08/2007.
Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 14 da revista jazz.pt, com fotografias de Luís Pedro Carvalho.
A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.

16ª edição do Jazz no Parque | Fundação de Serralves
Programação: António Curvelo
21, 28 de Julho e 4 de Agosto de 2007 | Ténis do Parque de Serralves, 18h00

O Jazz no Parque é um evento especial no calendário do Jazz no Porto e no país.
Um local magnífico, um ambiente informal e quase familiar, uma sequência curta de concertos espaçados, um público fiel e uma distinta “agenda”, definida e defendida pelo seu programador: “manter aberta a geografia contemporânea do jazz, sem exclusivos continentais ou sectarismos conceptuais”.

Não se lhe pode chamar um festival de jazz, nem parece ser essa a ambição ou vocação deste formato baseado em concertos isolados que se apresentam como experiências autónomas, relacionadas apenas de forma ténue nas intenções expressas na programação…
O Jazz no Parque é isso mesmo: uma experiência relativamente pura de fruição de Jazz, no Parque de Serralves, com todas as vantagens e desvantagens assumidas conscientemente pela Fundação.

Se se pode argumentar que num país com tão parca oferta, o aproveitamento da presença de alguns destes músicos para a realização de outras actividades (relacionadas com o Serviço Educativo, por exemplo) ou a contribuição para alguma rotação dos projectos apresentados no curto circuito nacional teria um impacto relevante na consolidação de públicos e comunidades de “fruição” mais aprofundadas ou na formação de novos músicos nacionais, temos que admitir que dificilmente uma abordagem desse tipo permitiria a manutenção do tal ambiente informal e familiar que os concertos destas tardes de verão continuam a ter e que tem um valor em si mesmo, por exemplo, na diversidade dos públicos e das suas atitudes.
O apelo que este ciclo de concertos mantém reside precisamente numa certa “leveza” que lhes está associada: os guarda-sóis no palco e na plateia, os check-sounds abertos ao público, as famílias completas com crianças, alguns apartes dos músicos entre eles e para o público… tudo isto contribui para uma experiência singular.

E esta 16ª edição apostava, no contexto dos objectivos expostos pela programação, numa “triangulação” capaz de passar fronteiras geográficas e conceptuais e a fórmula encontrada parecendo simples, foi, sem dúvida, eficaz: o quarteto norte-americano “Arts & Crafts” de Matt Wilson a tocar “clássicos” com inteligência, muito talento e bom humor, o sexteto francês de Henri Texier, militante em causas sociais e culturais que também passam pelo desenvolvimento de um jazz “internacionalizado” e o empolgante encontro da “nossa” Orquestra Jazz de Matosinhos com a música exigente de John Hollenbeck.

Matt Wilson’s Arts & Crafts

21 de Julho de 2007
Matt Wilson (bateria), Ron Miles (trompete), Gary Versace (piano), Dennis Irwin (contrabaixo, clarinete)

O projecto Arts & Crafts, de Matt Wilson é provavelmente uma das mais interessantes respostas à questão frequente “O que é que distingue um quarteto de jazz dirigido por um baterista?”

Não é necessariamente o repertório: Matt Wilson é um compositor competente (membro do Jazz Composers Collective), mas o alinhamento de “Scenic Route” (Palmetto Records, 2007)— o mais recente disco de Arts & Crafts e o guião do concerto no Jazz no Parque— passa também por temas de Pat Metheny, Bobby Hutcherson, Thelonious Monk, Donald Ayler e Ornette Coleman, numa selecção que, sendo criteriosa e intencional, também na forma da dedicatória à memória do saxofonista Dewey Redman (homenagem no disco que se estendeu a Michael Brecker, no concerto), não determina a identidade do quarteto.
Também não é a “presença” da bateria, enquanto instrumento, que o faz: o virtuosismo de Matt Wilson, amplamente demonstrado não só nos solos, mas também no suporte dos temas, também não chega para determinar essa identidade, até porque ela não se perde quando Matt Wilson larga a bateria e pega num pandeiro…

De facto, o que afirma “Arts & Crafts” como um projecto liderado por um baterista é a contaminação da totalidade do quarteto com as características basilares dum grande baterista de jazz: o suporte e a acentuação.
O intercâmbio constante de material entre os quatro músicos, as transições fluídas e consequentes entre tema e solos e a alimentação constante dos solistas através de comentários musicais de todos os parceiros, transforma a estrutura do quarteto numa rede apertada, em que o conjunto ultrapassa amplamente a soma das partes.

E esta ideia de “diálogo constante” parece ser, aliás, a premissa base deste projecto.

Por isso mesmo, a cumplicidade necessária para a solidez desta construção poderia ser posta em causa pela presença de Ron Miles, em substituição de Terrel Stafford, ou, antes disso, pela recente “aquisição” de Gary Versace para o colectivo, no lugar que pertencia a Larry Goldings. No entanto, quer Gary Versace, integrado desde a gravação do disco, quer Ron Miles, recrutado para a digressão, encaixam sem problemas no jogo bem humorado de Matt Wilson e compreendem bem a lógica de interacção constante necessária para que a performance resulte como “Arts & Crafts“.
(Ron Miles parece, compreensivelmente, menos à vontade, mas não a ponto de desequilibrar o conjunto)

Outra característica importante do ensemble, reflexo da personalidade do seu líder, é a muito apregoada boa disposição e o bom humor. Que, no concerto se confirma, ainda que, em alguns momentos, a delícia estampada no rosto de Matt WIlson, a propósito de alguma “private joke”, pareça um desafio à perspicácia do público.
Mas é extraordinariamente apropriado ao ambiente descontraído do Jazz no Parque que os músicos estejam tão bem dispostos. Capazes de brincar até com os atrasos das companhias aéreas ou com as dificuldades que transformaram o órgão em palco num “decorative organ” (a performance de Gary Versace só no piano e na clavineta num tema não pareceu em nada diminuída, na verdade). E musicalmente disponíveis para brindarem o público com as habilidades de Dennis Irwin como clarinetista num “chorinho” brasileiro, ou para pedirem ao público de Serralves que se levantasse, pusesse as mãos no ar e ondulasse como “ramos de árvores”, enquanto cantava “feel the sway now”, por hipotética sugestão da instrutora de Yoga de Matt Wilson.

À boa disposição e bom humor dos músicos o público reagiu com alguma timidez, mas a cumplicidade ficou estabelecida e toda a gente terá saído do court de ténis com um sorriso, ainda que interior.

E a verdade é que, neste registo de boa disposição, até se torna verosímil pensar que, musicalmente, poder-se-ia ter assistido a uma performance “fácil”, o que não poderia estar mais longe da verdade: não só os músicos envolvidos são extremamente dotados quer para a expressão solística, quer  para o jogo permanente de diálogo imposto por Matt Wilson, como as estratégias de selecção e apresentação de cada tema exigem, a par da capacidade técnica, uma inteligência criativa e atenção constantes.
A ligação do Matt Wilson’s Arts & Crafts à tradição do jazz enquanto expressão artística colectiva é assim mesmo: tão exigente como genuína.

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Orquestra Jazz de Matosinhos convida John Hollenbeck

28 de Julho de 2007
Convidados: John Hollenbeck, Theo Bleckmann e André Fernandes
Saxofones: Mário Santos (sax tenor, sax soprano), João Guimarães (sax alto, sax soprano, flauta), José Luís Rego (sax alto, clarinete), José Pedro Coelho (sax tenor, sax soprano, flauta), Rui Teixeira (sax barítono, sax soprano, clarinete baixo)
Trompetes: Claude Egea, Rogério Ribeiro, Susana Silva e José Silva
Trombones: Demian Verherve, Álvaro Pinto, Daniel Dias, Gonçalo Dias
Secção rítimica: Carlos Azevedo e Pedro Guedes (piano e fender rhodes), Demian Cabaud (contrabaixo), John Hollenbeck (bateria), André Fernandes (guitarra)
Voz: Theo Bleckmann

Não posso iniciar esta nota sem dizer— sem reservas— o espantoso que é olhar para o percurso percorrido pela OJM desde a sua fundação até ao estado em que se encontra. E como me parece importante, para o panorama nacional, esta aposta constante no desenvolvimento da orquestra através do contacto com figuras de referência que não são necessariamente “confortáveis” e que apresentam certamente desafios e provocam “dores de crescimento” aos músicos que compõem a OJM e ao conjunto. Carla Bley, Mark Turner, Ohad Talmor, Rich Perry, Chris Cheek, Perico Sambeat, Lee Konitz e, agora, John Hollenbeck e Theo Bleckmann são desafios que a OJM assume como momentos de aprendizagem e desenvolvimento e, felizmente para o público, resultam em concertos. Um concerto apenas, no caso vertente, o que é de lamentar, mas é o país que temos…

Esta nota inicial destina-se fundamentalmente a quem decida olhar para este concerto isoladamente, comparando-o com os últimos registos discográficos de John Hollenbeck— “A Blessing” (John Hollenbeck Large Ensemble – Omnitone, 2005) e “Joys & Desires” (Jazz Big Band Graz – Intuition, 2005)— e perguntando o que é que a OJM acrescentou à obra do compositor e “chefe/pensador de orquestra” norte-americano.
É que parece-me que a questão fundamental não é essa, mas sim o que é que o processo de tocar a obra de Hollenbeck acrescentou à OJM e será nessa perspectiva que me situo. Até porque esperar outra coisa duma situação destas é esquecer a verdadeira natureza duma “orquestra” enquanto unidade instrumental.

Assim, na perspectiva do desenvolvimento da OJM, o encontro com a obra e a figura de Hollenbeck (e o seu cúmplice Theo Bleckmann) parece continuar a expandir o universo sónico da orquestra e bastaria olhar para a diversidade de instrumentos usados pela muito flexível e competente secção de palhetas (5 músicos capazes de tocar os 4 instrumentos base da família dos saxofones, flautas, clarinete e clarinete baixo em variadíssimas configurações), ou para a diversidade de modos de tocar dos metais, para compreender que a escrita muito visual, quase fílmica, de Hollenbeck acrescenta vocabulário e paisagens sonoras que terão aplicações futuras difíceis de prever. A própria integração de um instrumentista da voz como Theo Bleckmann (notável a todos os níveis) na lógica de funcionamento da orquestra— misturado com o conjunto, dirigindo secções ou solando—, adivinha-se como um processo importante na ampliação de estratégias de funcionamento do colectivo.

É facto que o concerto seguiu, essencialmente, um guião e um padrão estabelecido pela Jazz Big Band de Graz em “Joys & Desires” e a capacidade da OJM interpretar de forma tão convincente e conseguida este exigente repertório é motivo de grande satisfação, acima de tudo, porque se trata de música de altíssima qualidade, com as referidas características quase fílmicas, dotada de grande profundidade, explorada em estruturas muito inteligentes, frequentemente com várias camadas rítmicas, que permitem a expressão musical de ideias e imagens poéticas de grande complexidade.
E não me refiro apenas à utilização de textos de Wallace Stevens— “The Bird with the Coppery, Keen Claws” permitiu uma abertura magnífica do concerto com os pássaros do Parque de Serralves a juntarem-se aos músicos—, de William Blake— autor do mote para “Joys & Desires”— ou de Hazrat Inayat Khan— “The Music of Life”— , mas sim à totalidade da escrita de Hollenbeck que parece, com maior ou menor frivolidade na explicação da “história” de cada tema, ter sempre uma lógica narrativa.
Lógica essa que permite ao ensemble desenvolver as formas de ilustrar vários ambientes e estados de espírito, explorando efeitos orquestrais e recorrendo a um importante acervo que é a história acumulada da música e do arranjo orquestral, filtrada por Hollenbeck (um músico completo, muito devedor a Bob Brookmeyer, mas que não se deixa facilmente apanhar numa armadilha de género) e adaptada ao instrumento que é a OJM.
E isso faz-se, também, sem grandes espaços para afirmação de solistas, como compete a um projecto que diverge da abordagem jazzística mais clássica. E a presença catalisadora de Theo Bleckmann (ao longo de todo o concerto) e, pontualmente, com mais fulgor, André Fernandes (guitarra), Demian Cabaud (contrabaixo), Carlos Azevedo (fender rhodes) e Mário Santos (sax tenor), não nos desviam da certeza de que todos os músicos envolvidos na experiência participaram activamente na construção de variadíssimos momentos de grande intensidade interpretativa.

Nesse sentido, a aposta da OJM na “nova ideia de Big Band” de John Hollenbeck é completamente ganha e o público agradece.

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Sexteto de Henri Texier “Strada”

4 de Agosto de 2007
Henri Texier (contrabaixo), Sébastien Texier (clarinete, clarinete alto, saxofone alto), François Corneloup (saxofone barítono), Gueorgui Kornazov (trombone), Manu Codjia (guitarra), Christophe Marguet (bateria)

Para o último concerto do Jazz no Parque estava reservado o sexteto “Strada“, de Henri Texier, um lendário pilar do jazz europeu. Texier nasceu em 1945 e tocou com figuras lendárias do bebop em clubes parisienses na década de 60 (Bud Powell, Kenny Clarke, Johnny Griffin…). É figura fundadora de algumas das mais importantes formações do jazz europeu (com Phil Woods, Daniel Humair, Michel Portal, Aldo Romano, Louis Sclavis…) e envolveu-se desde cedo nas vanguardas e no free jazz.
Os seus mais de 40 anos de carreira— como contrabaixista, compositor e na procura de formas complementares de expressão noutros instrumentos como o alaúde e as percussões— são um guião possível da história do jazz europeu e as suas propostas continuam a caracterizar-se por um sentido de exploração e militância assinaláveis. Militância cultural e social que resulta em vários projectos de cruzamento com outras linguagens musicais (na Suite Africaine, Carnets de Routes, An Indian’s Week, Mosaïc Man, etc), em várias incursões transdisciplinares (bandas sonoras para filmes, teatro e dança) e na afirmação de mensagens sociais e políticas na própria música— desde a militância ambiental do mais recente registo discográfico “Alerte à L’Eau” (Label Bleu, 2007), em causa no concerto do Jazz no Parque, à promoção e exploração da ideia de “revolta”: desde a abertura do concerto, “Work Revolt”, passando por “Dissent Revolt”, até “Sacrifice”, dedicado aos artistas franceses, interpretado com uma sequência notável de solos de grande profundidade.

Em boa verdade, o significado histórico, social e cultural da obra de Texier pode ser perfeitamente irrelevante para o espectador ocasional, mas dificilmente se poderia escrever algo que transmitisse tão rapidamente o significado da performance de “Strada“: 6 músicos extraordinariamente talentosos e criativos, empenhados na transmissão de uma mensagem musical que tem tanto de profundo como de evidente.

A música de Texier sintetiza influências de vários quadrantes culturais, é construída sobre uma base técnica sólida e procura algo de genuíno na exploração de emoções reais. Os longos e virtuosos solos, os emocionantes duos— “Flaque Étoile” (S. Texier e F. Corneloup) e “Flaque Soleil” (H. Texier e M Codjia)— e mesmo temas mais “leves” como “Holy Lola” (a música do filme homónimo de Bertrand Tavernier), mesmo quando estão carregados de um lirismo mais imediato, soam a verdade.
E essa será, provavelmente, a razão pela qual este terá sido o concerto com mais impacto junto do público.

O virtuosismo de cada um dos músicos, suficiente para saberem explorar ao máximo as possibilidades dos seus instrumentos, mantendo presentes os limites estruturais dos temas e dando espaço (até de palco) aos solistas, terá o seu cúmulo menos evidente, mas extremamente meritório e impactante, na amplitude global de volumes e intensidades e na distinção rigorosa entre intensidade emocional e volume. A opção, a espaços, por som não amplificado da parte dos 3 sopros e os baixos volumes gerais (principalmente por parte de Manu Codjia) nunca abafaram desnecessariamente o som natural do parque, numa opção que parece deliberada e que permitiu a exploração das diferentes combinações de volumes com intensidades emocionais, desde intervenções praticamente imperceptíveis ou quase ambientais, até aos picos em que H. Texier usou baquetas no contrabaixo, sincronizado com C. Marguet, enquanto S. Texier “gritava” no clarinete alto, F. Corneloup no sax barítono, Gueorgui Kornazov no trombone ou Manu Codjia “abria” os volumes à sua normalmente calma guitarra.

A amplitude de intensidades e volumes, conjugada com a estratégia definida de alternância entre várias sub-formações do sexteto (solos introdutórios, duos, quarteto com solista rotativo, etc) conduziu o concerto por uma via diversificada em que o vocabulário e as estruturas mais estritamente jazzísticas alternaram com momentos de improvisação livre, de inspiração mais “erudita” e com ritmos e ambientes mais africanizados, numa sequência de intervenções em que cada músico teve espaço mais do que suficiente para desenvolver ideias, contar histórias, partilhar experiências.
Particularmente nos vários solos de S. Texier, F. Corneloup e G. Kornazov, o público teve a oportunidade de ouvir a mesma ideia e estrutura ser desenvolvida através de vozes próprias, com as variações de intenção a deixarem adivinhar, mais do que uma troca curta de palavras, um diálogo continuado, reflectido e maduro.

Strada” parece ser um espaço de intervenção aberto e suportado por Henri Texier, onde todos os músicos têm uma voz própria e se respeitam, procurando, na amplitude das diferenças, partilhar convicções com o público.

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Texto escrito por João Martins, a 09/08/2007.
Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 14 da revista jazz.pt, com fotografias de Luís Pedro Carvalho.
A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.

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