Concerto duplo, estranha mistura
Texto escrito por João Martins, a 05/02/2008.
Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 17 da revista jazz.pt, com fotografias de Luís Pedro Carvalho.
A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
Fieldwork e Marta Hugon Quarteto
Sala 2, Casa da Música, Porto
3 de Fevereiro de 2008
Fieldwork
Vijay Iver (piano), Steve Lehman (saxofone alto), Tyshawn Sorey (bateria)
“Vijay Iyer: piano and compositions. Steve Lehman: saxophone and compositions. Tyshawn Sorey: drums and compositions.”
Assim se apresentaram os membros de Fieldwork, aparentemente tímidos e não muito confortáveis no fim do concerto na Sala 2 da Casa da Música. Esta apresentação final reflectiu bem, por um lado, a aparente dificuldade em estabelecer uma relação com o público presente e, por outro, o ênfase colocado pelo três jovens músicos sediados em Nova Iorque no seu trabalho como compositores. De facto, o que é pouco usual em Fieldwork não é a formação sem baixo, mas a relação com o processo de criar e interpretar o complexo reportório. O trio nova-iorquino e cujo único membro fixo desde a fundação é o pianista-compositor Vijay Iyer, contando com Steve Lehman no saxofone e composição— em substituição de Aaron Stewart já desde a gravação de “Simulated Progress” (Pi Recordings, 2005)— e Tyshawn Sorey na bateria e composição— em substituição de Elliot Humberto Kavee, que gravou ainda “Simulated Progress”—, apresenta obras extraordinariamente elaboradas, principalmente nas complexas estruturas poli-rítmicas usadas e abdica quase completamente da utilização de qualquer convenção na composição ou desenvolvimento, tornando todo o processo exigente e imprevisível, apesar de pré-determinado.
A interpretação das obras foi, de resto, feita de forma relativamente rígida e autónoma, sem que se notassem cumplicidades entre os músicos ou momentos de partilha em palco, apesar de se intuírem na escrita e execução, que se imagina virtuosa. Ainda que o mote inicial da banda fosse: “Design music you can’t play and then work tirelessly until you can. Then do it again.”
Para quem alimentava expectativas de ouvir o tão falado “jazz power trio for the new century”, as condições de amplificação reservavam a má surpresa do desequilíbrio de volumes e um perfil acústico desajustado— nomeadamente o piano pouco definido e o saxofone claramente subamplificado—, que tirava força e coesão ao conjunto, com prejuízo mais notado no caso de Steve Lehman. Mas esta designação de “power trio” não parece corresponder sequer exactamente à proposta de Fieldwork, e prende-se mais com o cliché face à inexistência de baixo/contrabaixo e à aposta em processos de construção colectiva de temas sujeitos a uma horizontalidade no tratamento instrumental que os aproximam de projectos que assumem relações mais claras com (algum) rock. Ainda assim, nem essa referência, nem a míriade de outras referências indicadas na apresentação do próprio projecto—”american jazz tradition, modern composition, African and South Asian musics, underground hip-hop and electronica, and the influential music of Chicago’s A.A.C.M.“— são facilmente reconhecíveis na escrita ou na interpretação. Os aspectos mais evidentes da performance, de facto, são o virtuosismo técnico de cada um dos músicos— apesar da inexistência de solos ou espaços de grande desenvolvimento—, a horizontalidade da escrita— nenhum dos intervenientes ocupa um lugar subserviente ou de segundo plano— e a utilização de todos instrumentos em toda a sua capacidade expressiva.
Com parte da energia presente em “Simulated Progress” e no que já se pode ouvir de “Door”—o disco a sair ainda em 2008 e já com excertos disponíveis no site da banda— dispersa por causa das condições de amplificação e com a postura aparentemente desconfortável ou retraída dos músicos, o concerto de Fieldwork não foi tudo o que poderia ter sido, mas foi, sem dúvida, uma viagem intensa a um universo muito particular, complexo e dinâmico, onde somos constantemente surpreendidos pela ordem no meio dum caos aparente e percebemos que, se alguém se “perder” não será certamente nenhum dos membros de Fieldwork, por muito que a escrita seja complexa mesmo para eles.
Genericamente, face às altas expectativas criadas quer como grupo, quer individualmente (Vijay Iyer foi nomeado Artista Mais Promissor em 2006 e 2007 nas categorias de Artista de Jazz e Compositor pela prestigiada Downbeat, assim como Steve Lehman, na categoria de Artista de Jazz no Saxofone Alto, também em 2006 e 2007 e Tyshawn Sorey é considerado uma das mais promissores novas estrelas da cena nova-iorquina e não só são intérpretes como compositores premiados e muito solicitados, tendo trabalhado com nomes como Anthony Braxton, John Zorn, Steve Coleman, Muhal Richard Abrahams, Mark Dresser, Butch Morris, entre tantos outros), não se pode negar um certo sentimento de desilusão ou até frustração por se intuir que o concerto poderia ter sido muito mais intenso.
Uma promessa adiada.
Links:
Marta Hugon Quarteto
Marta Hugon (voz), Filipe Melo (piano), Bernardo Moreira (contrabaixo), André Sousa Machado (bateria)
convidado: André Fernandes (guitarra)
Antes do concerto de Fieldwork e numa aposta arriscada da Casa da Música (e, no meu entender, perdida) de juntar numa mesma noite dois projectos fundamentalmente diferentes e inconciliáveis, o quarteto liderado por Marta Hugon apresentou temas do último disco, “Tender Trap”, e do próximo, “StoryTeller”.
Num registo competente e seguro, o quarteto apresenta um conjunto de canções, entre standards do reportório jazzístico e versões de músicas Pop, numa apresentação que se esforça demasiado por ser confortável para o público e que não parece apresentar grandes desafios aos músicos.
Com maior risco interpretativo imagina-se que o reportório poderia ganhar alguma profundidade e o projecto, alguma identidade. Assim, o único risco que corre é não ser mais do que “agradável”.
A conjugação, numa mesma noite de domingo, destes dois concertos, apesar de teoricamente defensável dentro do esforço de diversificação e promoção do confronto do público com os vários caminhos do Jazz, na prática, afigura-se irresponsável e com impactos negativos fortes. Objectivamente, havia público diferenciado para cada uma das propostas, que poderá não ter encarado com bons olhos a ideia de não poder separar e escolher o que pretendia ver. Nunca saberemos o que teria acontecido em termos de público se não fosse a heterodoxia da proposta de concerto duplo, mas creio que se teria evitado, pelo menos, a saída de parte do público durante o concerto de Fieldwork, o que afecta, normalmente a performance em curso.