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jazz.pt | Jazz no Parque 2008

Texto escrito por João Martins, a 23/09/2008.
Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 21 da revista jazz.pt.
A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.

Jazz no Parque 2008

12, 19 e 26 de Julho de 2008
Campo de Ténis do Parque de Serralves

A cada ano que passa, interrogo-me se a relação do Jazz no Parque com a Fundação de Serralves e com o(s) seu(s) público(s) sofrerá algum tipo de evolução. É que os 3 concertos ao ar livre, em 3 fins-de-semana estivais consecutivos permanecem aparentemente desligados da programação geral do Museu de Arte Contemporânea e, apesar da sua longevidade e do estatuto adquirido, não se vislumbram iniciativas que promovam vivências mais profundas das propostas que o Jazz no Parque apresenta ao público.

Em 2008, a proposta de programação de António Curvelo repete a fórmula de 2007, trazendo ao Ténis de Serralves, um concerto “norte-americano” (Matt Wilson’s Arts & Crafts, em 2007 e Steve Kuhn Trio, em 2008), um “português” (OJM com John Hollenbeck, em 2007 e “Cubo“, de André Fernandes em 2008) e um “europeu” (Strada Sextet de Henri Texier, em 2007 e o Quarteto de Michel Portal, em 2008). A repetição desta “visão tripartida” não apresenta “per se” qualquer inconveniente, assim como a presença de “repetentes” (Joey Baron, Michel Portal, Bruno Chévillon, Daniel Humair, André Fernandes, Mário Laginha, Alexandre Frazão são alguns dos músicos que regressam ao Jazz no Parque) não é, “per se” “sinal de fraqueza”. Concordo com António Curvelo quando afirma que, no jazz contemporâneo, o mesmo músico se pode apresentar “com identidades múltiplas, conforme o(s) tempo(s) e o(s) modo(s) em que se move”, pelo que a repetição de nomes não conduz à repetição da música ou do evento.
Porém, acredito que estes dois factores cruzados e o número crescente de “repetentes” num festival que se faz de 3 eventos apenas, com agrupamentos, em regra, pequenos, pode conduzir a um fenómeno de desgaste e conduz certamente, apesar dos melhores esforços de António Curvelo, a um certo sentimento de “déja vu“, ou “déjà entendu” por parte do público mais fiel.
Num evento com a dimensão do Jazz no Parque e com o perfil de público que se vai afirmando/cristalizando, poderá até ser uma opção estratégica. Mas programar um festival de jazz, ainda que apenas com 3 concertos, sem (alguma) ousadia e sem correr (grandes) riscos não parece coerente nem com a natureza da música que se pretende divulgar, nem com a natureza da instituição promotora.

Mas há Verões e Verões, e há Outonos que se parecem precipitar, pelo que estas considerações pessoais valem apenas e só por isso mesmo e em nada beliscam a qualidade de cada um dos concertos apresentados.

Da memória dos 3 concertos, surpreendentemente, realçam-se 3 nomes: Joey Baron, Alexandre Frazão e Daniel Humair.
Os 3 bateristas, por razões puramente emocionais-musicais, foram os que deixaram memórias mais marcadas e vivas, no que é apenas mais um sinal do lugar que a bateria, enquanto conjunto de instrumentos, ocupa no panorama do jazz contemporâneo e da importância de bateristas capazes de construir e usar criativamente uma voz inconfundível no instrumento, além de respeitarem os constrangimentos “funcionais-operacionais” básicos do jazz.

TRIO STEVE KUHN

12 de Julho 2008

  • Steve Kuhn, piano
  • David Finck, contrabaixo
  • Joey Baron, bateria

“The best in the world!”
Steve Kuhn referiu-se assim a David Finck e a Joey Baron, sempre que apresentou os músicos. Presume-se que se tenha igualmente em elevada consideração e ao ouvir este trio é difícil contradizer uma afirmação deste tipo. Tecnicamente exemplares, expressivos e articulados, musicalmente inteligentes, os três músicos norte-americanos têm direito a figurar, sem dúvida, em lotes de “melhores do mundo”. É por isso mesmo, ingrata a sensação de que, face a tão impressionantes músicos, se assistiu a um concerto apenas medianamente estimulante: não é tanto uma questão do conjunto ser menor que a soma das partes (a empatia e a sinergia estavam lá, assim como as cumplicidades musicais e pessoais), mas da escolha do repertório e da forma de o apresentar limitar significativamente a performance.
O concerto consistiu, de facto, numa exposição relativamente convencional de standards, muitos deles em forma-canção, e outros temas conhecidos, mas não muito estimulantes, numa exploração marcada por alguma contenção, capaz de, sem dúvida, demonstrar a qualidade invulgar dos músicos envolvidos, mas não suficiente para “abalar” o público. O tema reservado para um encore, um original do trio Kuhn / Finck / Baron, reforçou precisamente essa sensação, uma vez que, fora das estruturas mais rígidas dos standards ou da subserviência a lógicas harmónicas e melódicas mais comuns ou, simplesmente, fora da “jaula” rítmica do swing a que Joey Baron se submeteu abnegadamente e que serviu, apesar de tudo, com alguma diversidade, o trio deslumbrou. Começaria naquele momento, a partir desse original de forma mais livre, com alguns rasgos abstraccionistas, mais liberdade de acção e maior equilíbrio no trio enquanto unidade criativa, um outro concerto, certamente mais estimulante que o real. Mas tratava-se apenas do fim do concerto.
Para quem procurava uma tarde simpática e bem passada, num concerto de jazz bem tocado, por músicos excepcionais, terá sido praticamente perfeito. Para quem procurava um grande concerto de jazz, à altura dos nomes em palco, com um justo equilíbrio entre as raízes do jazz e o seu futuro, ficou o prazer de ver e ouvir três grandes músicos a tocar, num ambiente descontraído e complacente q.b.
A opção estival de Steve Kuhn, por um repertório adaptado a “grandes públicos” garante bons concertos, mas pode perfeitamente impedir concertos “excepcionais”, independentemente de estarem no palco alguns dos “melhores do mundo”.

“CUBO” – QUARTETO ANDRÉ FERNANDES

19 de Julho de 2008

  • André Fernandes, guitarra eléctrica e acústica
  • Mário Laginha, piano e fender rhodes
  • Nelson Cascais, contrabaixo e baixo eléctrico
  • Alexandre Frazão, bateria

A presença portuguesa no Jazz no Parque 2008 ficou a cargo do Quarteto de André Fernandes, guitarrista em grande forma e com cada vez mais visibilidade, nos seus projectos e pelos convites de colaboração que recebe. A junção, em disco e em palco, de André Fernandes com Mário Laginha, apresenta uma das mais saudáveis facetas do jazz português. Se a música de André Fernandes se inscreve numa sequência natural da de Mário Laginha, partilhando a exploração de estruturas rítmicas mais complexas que as do jazz tradicional e o domínio de elementos melódicos relativamente “angulosos”, a persona musical de cada um deles é fortemente marcada quer pelos instrumentos (a abordagem às construções harmónicas é uma das formas de o comprovar) quer pela relação que estabelecem com a(s) outra(s) música(s): na escrita de Laginha encontramos, ora diluídas referências à sua formação clássica, ora explícitas incursões a (outros) mundos musicais (Brasil e África nas suas colaborações frequentes com Maria João); na de André Fernandes, encontramos maiores referências de tipo instrumental (as técnicas e os sons de grandes guitarristas de vários géneros) e, por isso, uma relação mais ou menos explícita com os territórios dominados pela guitarra: o rock e o pop.

Deste encontro, nasce música com características “angulares” ou geométricas, como o nome do álbum sugere, mas também aritméticas, dada a exploração de diferentes módulos rítmicos e a diversidade de “contagens” presentes nos temas. Música, por isso, que exige rigor por parte dos músicos e atenção por parte do público para ser fruída na totalidade. E os músicos envolvidos neste quarteto, cumprem com excelência, dedicando o rigor necessário e acrescentando côr e personalidade a estas construções. O rigor e a riqueza criativa de Alexandre Frazão já só surpreende os incautos, mas não é demais destacar a sua prestação marcada por grande diversidade tímbrica e imaginação, dentro das (por vezes) difíceis estruturas de André Fernandes. Nelson Cascais, por sua vez, assegura mais a condição “operária” das secções rítmicas, oferecendo grande coesão ao grupo, sobre a qual Mário Laginha e André Fernandes podem fazer algumas das suas “acrobacias”. Da prestação de André Fernandes destaca-se o rigor e a clareza do fraseado, a densidade do “discurso musical” e uma habilidade melódica que não se deixa substituir pela complexidade das estruturas, para a qual contribui uma certa constância na “voz” da sua guitarra. Já Mário Laginha entrega-se com muita generosidade, dividindo-se pelo piano e pelo fender rhodes, assegurando, muitas vezes em simultâneo, a contribuição do piano para a secção rítmica, com a sua enérgica mão esquerda, e a presença do fender rhodes, tanto nos temas, como nos solos, como no complemento harmónico, numa relação tímbrica inteligente com a guitarra de André Fernandes.
O aspecto menos conseguido do concerto, ainda assim, prende-se com a relativa falta de individualidade dos temas apresentados, que se sucederam com explorações bem conseguidas, pontuadas por alguns solos excepcionais, mas que constituem uma linha mais ou menos contínua, da qual não se distinguem “grandes temas” ou, pelo menos, temas que permaneçam.

QUARTETO MICHEL PORTAL

26 de Julho de 2008

  • Michel Portal, clarinetes e saxofone soprano
  • Tony Malaby, saxofone tenor
  • Bruno Chevillon, contrabaixo
  • Daniel Humair, bateria

Logo no início do concerto do Quarteto de Michel Portal, ficou claro que aquele era o espaço de maior liberdade e risco no Jazz no Parque. Improvisação livre, idiomas em confronto, participação intensa de cada um dos 4 músicos na condução e construção, a cada momento, da performance. Hesitações, tentativas, erros inclusivamente, fizeram parte duma experiência com alguma intensidade, que permitiu a afirmação inequívoca do imenso talento criativo em palco. E da coragem.
Daniel Humair e Bruno Chevillon são uma dupla de luxo e asseguram um “contexto” fértil para a improvisação. Michel Portal, que se declara, dependente desse “contexto”, foi verdadeiramente extraordinário em vários momentos, mas não teve uma performance equilibrada, mostrando corajosamente ao público que, mesmo quando o contexto é de grande liberdade, existem escalas de valor. Tony Malaby foi mais equilibrado, com um ouvido extraordinário e uma imensa capacidade de reacção, mas, aparentemente, numa entrega menos “incondicional”, recorrendo ocasionalmente a “figuras de estilo” já conhecidas e de eficácia comprovada. Michel Portal, por seu lado, parecia disposto a tudo, mas condicionado na performance por factores externos.
Mas Humair e Chevillon pareciam, além de dispostos, capazes de tudo e alimentaram um concerto que, apesar de nem sempre ao melhor nível, foi exigente para os músicos e para o público, que é também o que se espera, dum concerto excepcional.

O discurso multi-idiomático de Michel Portal, que circula com enorme à vontade através das fronteiras estilísticas, e que manipula virtuosamente vários instrumentos, é uma faca de dois gumes e, se no limite do génio, Portal nos deixa assombrados com a densidade do seu discurso, bastam pequenas falhas de concentração/inspiração para expor um universo de hesitações e confrontos. Mas essa é uma das grandes delícias da música improvisada e os 4 músicos apresentaram-se com a coragem e a energia criativa necessárias para se elevarem e alimentarem os discursos uns dos outros, gerindo o espaço e o tempo de cada um, partilhando fragmentos de discurso, contrapondo novas ideias, co-conduzindo e co-compondo, em tempo real, um concerto-desafio.

Texto escrito por João Martins, a 23/09/2008.
Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 21 da revista jazz.pt.
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