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jazz.pt | Jazz no Parque 2009, Regresso à História

Jazz no Parque

18ª edição
18 e 25 de Julho e 1 de Agosto de 2009
Ténis do Parque de Serralves

A edição que marca a maioridade do Jazz no Parque e que coincide com o duplo aniversário de Serralves (20 anos da Fundação e 10 anos do Museu de Arte Contemporânea) teve como principal novidade o facto de se apresentarem 2 projectos originais, resultantes de encomendas do seu programador, António Curvelo, facto que não sucedia desde 2002. As encomendas, dirigidas a Mário Barreiros e a Bennie Wallace, ilustram com rigor a orientação programática deste festival— em rigor, trata-se dum ciclo de 3 concertos— que aposta na divulgação e afirmação dum Jazz de pés bem assentes na história. Se em anos anteriores assistimos a alguns concertos mais “arriscados”, protagonizados por músicos que circulam com gosto por algumas fronteiras estilísticas e se aventuram, a espaços, por algum discurso mais vanguardista, esta edição, em grande parte, graças às encomendas dirigidas, afirma um regresso a um Jazz mais convencional, que celebra respeitosamente o passado e arrisca muito pouco na definição de futuros (im)possíveis.

18 Julho 2009, 18h00
Mário Barreiros
Kind Steps – O Legado de 1959

  • Mário Barreiros bateria
  • Abe Rábade piano e direcção musical
  • Carlos Barretto contrabaixo
  • Avishai Cohen trompete
  • Ben Van Gelder sax alto
  • Jesús Santandreu sax tenor

A Mário Barreiros, António Curvelo sugeriu a invocação do ano mítico de 1959 em que se editaram obras incontornáveis para o futuro do Jazz— como “Kind of Blue”, de Miles Davis, “Giant Steps”, de John Coltrane, “The Shape of Jazz to Come” e “Change of the Century”, de Ornette Coleman e “Mingus Ah Um” e “Blues and Roots”, de Charles Mingus—, ao mesmo tempo que se consolidavam alguns dos alicerces sobre os quais se construía esse futuro— com edições como “Portrait in Jazz”, de Bill Evans, Scott LaFaro e Paul Motian, “Sevem Pieces”, de Jimmy Giufre 3, “Modern Jazz Classics”, de Art Pepper com Eleven ou “Blowin’ the Blues Away”, de Horace Silver. Uma viagem de 50 anos no tempo para a qual Mário Barreiros chamou o pianista galego Abe Rábade, para dirigir um sexteto e se debruçar sobre os propostos “Kind of Blue”, “Giant Steps”, “Mingus Ah Um” e “The Shape of Jazz to Come”, acrescentando “Cannonball Takes Charge”, de Cannonball Adderley e “Anatomy of a Murder” de Duke Ellington.
“Kind Steps – O Legado de 1959”, pelo sexteto de Mário Barreiro e com direcção musical de Abe Rábade foi, assim, a primeira proposta a subir ao palco do Ténis do Parque de Serralves, no dia 18 de Agosto, com Avishai Cohen (trompete), Ben Van Gelder (sax alto), Jesús Santandreu (sax tenor), Carlos Barretto (contrabaixo) e os próprios Mário Barreiros (bateria) e Abe Rábade (piano).
Mário Barreiros e Abe Rábade, na escolha dos temas e nos arranjos, aprofundaram o carácter historiográfico da encomenda e todo o ensemble pareceu empenhado numa reconstituição relativamente fiel, ou pelo menos, académica, dos temas seleccionados. Uma de muitas opções possíveis, eventualmente a menos pertinente, dada a miríade de reconstituições a que este reportório é submetido diariamente em escolas e clubes de jazz. Uma selecção mais criteriosa dos temas a abordar ou um tratamento estilístico- quer nos arranjos, quer na interpretação, quer nos solos- menos “colado” aos originais teria eventualmente sido mais refrescante e poderia mesmo ter-se afirmado como uma estratégia mais confortável para os músicos que, com excepção de Abe Rábade, claramente alinhado com a proposta e Avishai Cohen, o único solista que parecia confortável nas mudanças de registo e se libertou um pouco mais nos seus solos, pareciam demasiado constrangidos.
De forma geral, o concerto em forma de revisitação desta música seminal, mas com mais de 50 anos, poderia ter sido uma oportunidade de perspectivar futuros, mas o ensemble conduziu o concerto de forma quase reverencial, acertando os registos, as sonoridades e os vocabulários de improvisação de acordo com os originais, eliminando quase por completo a afirmação de alguma singularidade. E ao debruçar-se mais sobre as edições menos controversas de 1959 (de Ornette Coleman só tocaram “Chronology”, por exemplo), seleccionando clássicos como “All Blues”, de Miles Davis, “Blue in Green” de Bill Evans/Miles Davis, “Almost Cried” de Duke Ellington, “Syeda’s Song Flute” de Coltrane e “Better Get it in your soul” e “Goodbye Porcupine” de Mingus, que só muito raramente foram tratados como material “novo”, o concerto tornou-se académico e até, em alguns casos, aborrecido, apesar da excelente qualidade técnica dos intérpretes.

25 de Julho de 2009, 18h00
Donny McCaslin Group

  • Donny McCaslin sax tenor
  • Ricky Rodriguez contrabaixo
  • Jonathan Blake bateria

A presença do trio dirigido pelo saxofonista norte-americano Donny McCaslin foi o único concerto que não resultou de encomenda directa do Jazz no Parque e consistiu na apresentação dos álbuns já editados pelo grupo, particularmente “Recommended Tools” (GreenLeaf Music 2008), gravado com Jonathan Blake e Hans Glawischnig. Donny McCaslin apresenta um jazz contemporâneo ancorado em referências históricas sólidas, articulado num vocabulário bem estruturado, dialogante com um universo musical externo, mas próximo— como a música brasileira (Hermeto Pascoal é uma das suas referências) ou a pop (um dos temas é dedicado a Madonna)—, mas um dos factores determinantes no impacto que a sua performance tem sobre o público é o seu virtuosismo e o extraordinário rigor técnico que todo o grupo assegura, sem sacrifício da musicalidade. A significativa capacidade técnica de Donny McCaslin, quer na fluidez e rapidez do fraseado, quer no rigor da afinação e no detalhe tímbrico expressivo, acompanhado a grande nível quer por Jonathan Blake, quer por Ricky Rodriguez, colocam a performance do trio num nível de execução difícil de atingir e permitem uma grande exploração dos temas, cuja construção demonstra à partida uma enorme confiança na capacidade técnica dos intérpretes. Ainda assim, a “força da técnica” não esmaga a musicalidade da performance, fazendo lembrar a máxima dedicada aos bailarinos clássicos e aos patinadores do gelo de que não devem em nenhuma altura deixar transparecer a dificuldade associada aos seus movimentos, já que isso se traduzirá em desconforto para o público. O Donny McCaslin Group cumpre esse requisito clássico, apresentando uma performance envolvente e, em alguns momentos estonteante, com o virtuosismo a servir propósitos musicais.
E se, globalmente, a música do Donny McCaslin Group se mantém fiel a formas clássicas do jazz, a disponibilidade do solista em assumir papéis tradicionalmente atribuídos à secção rítmica, liberta a estrutura do trio para outras explorações e para a afirmação completa de cada um dos intérpretes, que acontece quer em solos, quer em duos, quer na forma de pergunta-resposta.
O concerto evolui, passando revista e reconhecendo algumas das influências menos óbvias de Dony McCaslin, como Hermeto Pascoal e Bill Frisell. O seu registo, recorda, a espaços, e de acordo com os ambientes, a fluidez de fraseado de Michael Brecker ou o timbre luminoso de Jan Garbarek, mas a sua voz afirma-se de forma inequívoca, com o acompanhamento certeiro e cúmplice de Jonathan Blake (com 1 grande solo em “3 Signs” entre várias intervenções notáveis) e a grande qualidade de Ricky Rodriguez, quer em papéis mais tradicionais, quer no desenvolvimento de solos, ou na introdução de temas como “Late Night”, com a devida vénia a Bill Frisell.

1 de Agosto de 2009, 18h00
“Bennie Walace Plays Monk”

  • Bennie Wallace sax tenor
  • Donald Vega piano
  • John Hebert contrabaixo
  • Yoron Israel bateria

Ao saxofonista norte-americano Bennie Wallace, António Curvelo sugeriu uma nova incursão ao universo do génio Thelonious Monk, recuperando um projecto de 1981 do saxofonista do Tennessee. Bennie Wallace, já com uns respeitáveis 62 anos, aceitou o convite com generosidade e entusiasmo, dada a presença regular do reportório de Monk nos seus projectos, o seu enorme potencial e as possibilidades criativas ainda por realizar. Apresentou-se numa formação clássica de quarteto, com Donald Vega, John Hebert e Yoron Israel e entregou-se a um concerto que teve grandes momentos, mas no qual se puderam também notar as naturais fragilidades associadas à sua idade: quer nas dificuldades de articulação mais rápida de algum fraseado, quer na afinação e timing de algumas intervenções.
Mas esses momentos mais frágeis humanizam uma performance marcada pela generosidade e entrega e pelo inconformismo: Bennie Wallace, logo na primeira introdução a solo, em “Twinkle, Twinkle”, mostrou que pretendia explorar e reinventar o genial reportório de Monk, mais do que se limitar a interpretá-lo, e assim o fez, quer nos solos, quer na forma de apresentar os temas. Entre os músicos que o acompanhavam, destaque, pela positiva, para o contrabaixista John Hebert (grande solo em “Heavy Rotation”), muito atento e alinhado com Bennie Wallace e, pela negativa, para o baterista Yoron Israel, a quem parecia faltar convicção na interpretação mais livre e criativa deste reportório.
As flutuações na performance de Bennie Wallace, a quem, por vezes, parecia faltar em forma física o que sobrava em energia criativa marcaram o desenvolvimento do concerto, mas o génio de Monk foi assinalado de forma genuína e momentos como o solo (mesmo a solo) de Bennie Wallace, em “Round About Midnight”, elevaram o concerto a um outro nível, musical e emocional.

Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 27 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.

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