Falo, no dossier do próximo projecto do Visões Úteis, a propósito de um objecto multimédia, dum “universo que tende a render-se à mediação tecnológica, desistindo (cobardemente) de encontrar formas analógicas de satisfazer a necessidade humana de interagir.”
O que é, senão isso, a explosão de weblogs, como este?
Assumi há muito que me escondo atrás da “mediação tecnológica”— chamando-lhe vários nomes, claro— para suprir algumas das minhas dificuldades pessoais na interacção “real” com as pessoas.
(Um certo psiquiatra falou em termos de inteligência emocional, mas prefiro a abordagem do Ramiro…)
Depois pus-me a pensar nisto da “alienação física do indivíduo através da mediação tecnológica”. Neste discurso que se aplica constantemente às intervenções digitais. Uma atitude pós-moderna, de relativismo social/ histórico, diria que isto não reflecte uma verdadeira novidade antropológica ou social, apenas uma subtil mudança formal. A arte, desde as suas origens religiosas, reflecte exactamente a necessidade de filtrarmos certos aspectos da realidade, projectando-os de forma subjectiva nos meios disponíveis— desde o relato cosmogónico transmitido oralmente, à tela de Picasso. De facto, reconhecemos de tal maneira essa necessidade da mediação, que o reconhecimento social do feiticeiro, do padre e do artista são “tão velhos como as putas”. E aí, nada de novo no reino da produção digital de conteúdos culturais/ artísticos.
Mas há qualquer coisa de novo nisto tudo. Qualquer coisa que nos faz mexer e pensar nos fenómenos de “alienação/ des-espacialização/ des-sensibilização/ des-corporização associadas ao objecto multimédia” (isto também vem do dossier). Se dou por mim a pensar que não é na produção do objecto artístico/ cultural que reside a diferença… assumo que o problema está no processo de fruição e não de criação.
E dizer isto é reclamar para o artista (como para o feiticeiro, o padre e o louco) o direito de mediarem a sua relação com a realidade através dos seus próprios filtros subjectivos, negando-o ao indivíduo. É dizer que o que muda, na “digitalização cultural”, não é o processo pelo qual o artista/ autor se relaciona com a realidade ou com o objecto artístico, nem sequer a necessidade social de arte/ mito /cultura. O que muda, o que “estraga” tudo e nos faz apontar baterias ao “digital” como processo de alienação é a criação de processos individuais e generalizados de construir a mediação. O que nos preocupa é que, de repente, vemo-nos numa sociedade com uma enorme proporção de artistas/ autores/ feiticeiros/ padres/ loucos, indivíduos que usam os filtros com os quais se constrói uma representação da realidade, como realidade per si. O “virtual” é isto: a transformação dos filtros de compreensão da realidade em realidade, através de uma “overdose de informação que atordoa a mente”, que nos faz sentir próximos de uma verdade comum.
Por isso é que o Visões Úteis, que faz teatro, se preocupa com esta questão? Acho que sim. Não é uma preocupação pelos processos de criação artística “digitais” enquanto projectos de alienação, mas da “digitalização” generalizada, que nos põe a todos a publicar pensamentos na net, e nos faz correr o perigo de perdermos a noção exacta das fronteiras físicas do nosso corpo.