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jazz.pt | CHRIS LIGHTCAP’S BIGMOUTH, “DELUXE”

Chris Lightcap's Bigmouth (Clean Feed)

CHRIS LIGHTCAP’S BIGMOUTH, “DELUXE”

CLASSIFICAÇÃO: 3.5/5

Bigmouth é o título do segundo álbum do quarteto liderado pelo contrabaixista Chris Lightcap editado pela Fresh Sound New Talent, em 2003. Mantendo Tony Malaby e Gerald Cleaver e com Chris Cheek no lugar de Bill McHenry e Craig Taborn nos teclados, “Bigmouth” passa a ser nome do quinteto que agora edita Deluxe pela Clean Feed e apresenta 8 originais do contrabaixista originário da Pensilvânia e sediado em Nova Iorque. Temas alongados construídos sobre bases solidamente definidas e defendidas por Chris Lightcap, Craig Taborn e Gerald Cleaver, leves mas dinâmicas, nas quais se apresentam pequenos temas, quase orquestrais no arranjo dos sopros e onde se privilegia o posterior desenvolvimento dos solos dos 2 saxofonistas, em frequentes situações ora de diálogo ora de confronto— um com o outro ou mesmo com a estrutura do próprio tema, aparentemente—, sem que, ainda assim, seja evidente uma divisão entre secção rítmica e solistas, já que a estrutura base se mantém presente e rica, quer pela articulação do contrabaixo, quer pela expressão dos teclados ou pela variedade de abordagens e pontuações da bateria. O desenvolvimento fluído dos temas e a sobreposição dos solos, associados a uma certa característica “circular” da escrita de Lightcap ilude uma ideia de direcção clara e esse poderá ser o maior handicap do disco, repetindo-se mais do que uma vez a sensação de que ou o tema não vai a lado nenhum ou o tema se pode prolongar eternamente.
A Chris Cheek e Tony Malaby, com Andrew D’Angelo em 3 temas, cabe a tarefa de construir sobre estes “quasi-ostinatos” um discurso / diálogo / confronto que explora o seu potencial e demonstra a complementaridade de abordagens possíveis, na presença de músicos deste calibre. “Two-Face” é, eventualmente, a faixa que mais se afasta deste modelo, com Craig Taborn no piano a contribuir claramente para a desmontagem do alicerce inicial, em clara colaboração com os 2 saxofones e o grupo a divergir globalmente mais, mas mesmo neste tema, o fim é um regresso à estrutura inicial. Mais representativa da estratégia global do disco será a abertura “Platform” ou “Deluxe Version”, com esta segunda a dispôr de espaço para um solo de Craig Taborn, numa estrutura mais “convencional”, sem sobreposição de solos e duma leveza quase excessiva. “Fuzz”, a encerrar o disco, filia, eventualmente, este Deluxe nos férteis cruzamentos do jazz com um certo universo pop-rock, carregado de “groove” e com muita energia criativa.

CHRIS LIGHTCAP’S BIGMOUTH, “DELUXE”

Clean Feed, 2010
Gravado em Nova Iorque, 2008

  • Chris Lightcap contrabaixo
  • Chris Cheek sax tenor
  • Tony Malaby sax tenor
  • Craig Taborn piano e wurlitzer
  • Gerald Cleaver bateria
  • Andrew D’Angelo sax alto (convidado em 3 faixas)
Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 31 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | KEEFE JACKSON QUARTET, “SEEING YOU SEE”

Keefe Jackson, Seeing You See (Clean Feed)
KEEFE JACKSON QUARTET, “SEEING YOU SEE”

CLASSIFICAÇÃO: 3/5

Seeing You See é a estreia discográfica do quarteto liderado por Keefe Jackson, jovem saxofonista, clarinetista, compositor e improvisador activo na cena de Chicago desde 2001 que reúne Jeb Bishop, Jason Roebke e Nori Tanaka, numa estrutura de quarteto relativamente convencional, para a interpretação de 10 temas assinados pelo líder, numa escrita que não sendo surpreendente, faz um uso inteligente dos recursos e alterna entre temas algo convencionais como “Put My FInger on It” e estruturas um pouco mais fluídas, como a faixa de abertura, “Maker”, o título “Seeing You See” ou “How-a-Low”, com Jackson no clarinete baixo, que permite igualmente uma mudança interessante de côr, no disco.
Os temas são genericamente interessantes e as interpretações eficazes, com Jeb Bishop a destacar-se pelos maiores riscos que corre e pelos momentos mais “livres” que protagoniza, sendo por isso de destacar a inteligência e generosidade de Keefe Jackson, quer na sua escolha, quer no espaço que lhe dá no desenvolvimento dos temas, mas a escrita, apesar de tudo, afirma-se como um constrangimento, já que denota alguma imaturidade, patente nas vozes sistematicamente dobradas entre Jackson e Bishop, por exemplo.
Tanaka e Roebke asseguram com igual facilidade e eficácia momentos mais swingados e estruturas free ou “simples” texturas, mas nunca saem verdadeiramente do segundo plano, apesar de deixarem boas indicações.
Na “ribalta”, a relação entre Jeb Bishop e Keefe Jackson parece demasiado controlada pela escrita e por estratégias que parecem evitar o diálogo ou o confronto e ao disco, no global, parece sempre faltar qualquer coisa que lhe dê mais identidade, apesar dos belíssimos momentos que oferece.

KEEFE JACKSON QUARTET, “SEEING YOU SEE”

Clean Feed, 2010
Gravado em Chicago, 2008

  • Keefe Jackson sax tenor e clarinete baixo
  • Jeb Bishop trombone
  • Jason Roebke contrabaixo
  • Noritaka Tanaka bateria
Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 31 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | LAWNMOWER, “WEST”

Lawnmower, West (Clean Feed)
LAWNMOWER, “WEST”

CLASSIFICAÇÃO: 2/5

Um quarteto dirigido por um baterista, com 2 guitarras eléctricas e um saxofone alto, não é propriamente uma formação habitual. Mas para Luther Gray, baterista originário do movimento punk e com colaborações no mundo da improvisação e do free jazz com nomes como Anthony Braxton, Joe Morris, Joe McPhee ou Ken Vandermark, que tem como objectivo para este seu projecto Lawnmower realizar uma síntese de todas as suas influências musicais, passadas e presentes, a companhia dos 2 guitarristas do indie-folk, Geoff Farina e Dan Littleton— com quem já tinha colaborado em “New Salt”— e do saxofonista Jim Hobbs, uma voz particular, reconhecida pelas suas colaborações com Joe Morris, seria a composição necessária. A junção resulta num universo híbrido, explorado em longas incursões alimentadas pela pulsão de Luther Gray, e pelas guitarras de Farina e Littleton, que afirmam paisagens relativamente áridas e de horizontes abertos, sobre os quais Jim Hobbs plana em linhas livres, num funcionamento geral em 3 camadas: uma onde reside Luther Gray, outra onde as guitarras trocam materiais entre si e definem um “contexto” geral e uma terceira, onde o saxofone parece eventualmente, demasiado livre ou isolado.
Excepções mais notáveis serão “Prayer of Death”, com uma forma harmónica, melódica e rítmica mais determinada pelo canto blues-folk de Littleton, que Hobbs prefere desconstruir lentamente, sem grande resultado ou “Giant Squid” com linhas melódicas herdeiras da tradição de Ornette Coleman, sobre uma paisagem muito angulosa e pontilhada. Os momentos mais interessantes e vivos desta última, com mais trocas de material entre as várias camadas musicais referidas, contam-se entre os momentos mais bem conseguidos do disco, onde se ouve, de facto, alguma síntese e não a sobreposição de referências, mas a sensação geral é a de uma distância excessiva entre os elementos do quarteto que parecem demasiado reticentes em fazer movimentos para fora das suas zonas de conforto respectivas. “Dan”, na (tentativa de) longa sucessão de drones partilhados é talvez o melhor exemplo dessa reticência.
Destaca-se ainda assim, pela negativa, a relação de Jim Hobbs com os guitarristas, quer por alguns excessos expressivos do saxofonista, quer pela frequente dificuldade de afinação (de parte a parte) na partilha do mínimo material melódico ou no encaixe harmónico, que apenas se consegue ouvir na faixa final, “Two” e, mesmo aí, requer alguma boa vontade do ouvinte.

LAWNMOWER, “WEST”

Clean Feed, 2010
Gravação: Cambridge MA, 2008

  • Luther Gray bateria
  • Geoff Farina guitarra
  • Dan Littleton guitarra
  • Jim Hobbs sax alto
Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 31 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Violino Escravo, de Jon Rose @ Serralves

“Violino Escravo – A True Story of a Slave Violinist”
de Jon Rose

Auditório de Serralves
13 de Maio de 2010, 21h30

Ciclo Documente-se!
Sentidos do Reconhecimento

“Violino Escravo – A True Story of a Slave Violinist” resulta duma encomenda da Fundação de Serralves a Jon Rose que encontrou neste convite as condições necessárias para a realização dum projecto de “radio art” dedicado à figura e à história de Joseph Emidy, um escravo negro oriundo da Guiné, em finais do século XVIII, violinista quase acidental, com uma vida atribulada que inclui a passagem pela Orquestra da Ópera de Lisboa e por um navio da Marinha Britânica, com um fim de vida na Cornualha, onde se veio a afirmar como um dos mais importantes compositores, violinistas e professores do sudoeste de Inglaterra, nas primeiras décadas do século XIX, sem que alguma das suas composições tenha sobrevivido até aos nossos dias, muito devido à sua condição de ex-escravo e à cor da sua pele. Para nos apresentar esta peculiar biografia, Jon Rose recorre a um dos seus suportes de eleição, a “radio art”, que tem usado com frequência para re-escrever a História do Violino, contando com a colaboração de Flávio Hamilton na voz (gravada) e apresentando a peça com a particularidade de acrescentar à gravação (suporte tradicional destas peças) um solo ao vivo, executado pelo próprio Jon Rose.
A inclusão desta encomenda no Ciclo DOCUMENTE-SE!, que pretende “promover, a partir de um conjunto de propostas artísticas e de abordagens de cientistas sociais, uma reflexão sobre os processos do (não) reconhecimento do eu individual e social na contemporaneidade, estruturando identidades, relações de poder e contextos sociais” assume particular pertinência, não só pela construção própria de um objecto artístico de carácter documental, como pela apresentação dum “formato” que uma parte do público português tem, objectivamente, dificuldade em reconhecer como prática performativa, quer pelo destaque dado a um criador que, em todo o seu percurso, assume uma considerável fixação por processos de (re)conhecimento, particularmente, no que ao seu instrumento de eleição diz respeito.
Com uma vasta obra como compositor e improvisador e sobre um vasto número de suportes e formatos, Jon Rose continua indissociável do violino, enquanto instrumento, mas também enquanto tema central de grande parte da sua obra e a performance que trouxe a Serralves é plenamente ilustrativa disso mesmo.

Ainda antes de “Violino Escravo” ouvimos e vimos 2 partes de “Palinpolin” (2010), para solo de violino tocado com arco interactivo— manipulando som e imagem (no caso da 2ª parte)— num registo eventualmente mais reconhecível da sua obra, já que o arco interactivo e a sua utilização virtuosa constituem uma das imagens de marca mais fortes da carreira de Rose. A apresentação destas peças recentes, constituiu, assim, uma primeira aproximação a um “sentido do reconhecimento”, construindo-se sobre a manipulação extensiva mas relativamente clara e/ou explícita de formas de tocar ou fazer soar um violino e de manipular o material produzido (des)codificando um complexo vocabulário gestual que se constrói sobre a prática violinística convencional, expandindo os significados de cada arcada e cada movimento do arco, com tradução musical e visual imediata.
Destaca-se, na segunda parte de “Palinpolin”, que incluía a manipulação de vídeo, assim como em todos os momentos em que o arco se afastava do violino, clarificando a relação imediata entre os movimentos e os sons produzidos, uma certa preocupação em garantir uma maior adesão do espectador à performance, através duma espécie de demonstração da lógica interna da performance.
A linguagem performativa de Jon Rose não só é consequente, como tem a preocupação de ser explícita, o que, além de refrescante, é compreensível, pedagógico e positivamente assinalável.
Excluindo a eventual fragilidade da realização plástica da componente vídeo de “Palinpolin”, recorrendo a uma manipulação da imagem relativamente elementar e, porventura, demasiado previsível, esta primeira parte do concerto foi um solo entusiasmante de violino e electrónica em tempo real, com som quadrifónico, ao melhor nível do violinista britânico, figura central da música experimental australiana.

“Violino Escravo”, a peça radiofónica, apresentou-nos uma outra faceta de Jon Rose, num registo marcado pela consequência narrativa da peça e pela estrutura híbrida de documentário, reportagem e teatro radiofónico. O solo ao vivo, sem manipulação electrónica, permitiu um outro contacto com a sua técnica instrumental, e os recursos composicionais em uso, na gravação, apresentaram caminhos musicais diversos: pseudo-arqueologias musicais, referências folclóricas e humorísticas, construções ambientais e texturais bastante ilustrativas… Uma experiência interessante, eventualmente enfraquecida pelo recurso demasiado frequente a alguns dos motivos musicais que pareciam cumprir uma função pré-estabelecida no cânone radiofónico em uso.

Duas visões complementares do Violino, primeiro através da expansão da técnica instrumental, depois através dum episódio particular da sua História, quase tão extraordinário como desconhecido.

Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 31 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Fight The Big Bull: All is Gladness in the Kingdom

Fight The Big Bull, All is Gladness in the Kingdom
All is Gladness in the Kingdom, Fight The Big Bull (feat. Steven Bernstein)

CLASSIFICAÇÃO: 5/5

Fight The Big Bull reúne uma enérgica comunidade de músicos criativos de Richmond (Virginia), liderados pelo guitarrista Matt White, que, neste disco, se reúnem a propósito duma intensa colaboração com o trompetista e compositor Steven Bernstein que aceitou o desafio de, em 9 dias, partilhar o máximo possível com toda a comunidade.
A inesperada intensidade descrita por Steven Bernstein transparece claramente no que nos é dado a ouvir. O disco, com o seu colectivo massivo de 7 sopros (3 palhetas + 4 metais), secção rítmica com 2 percussionistas, um contrabaixo e a guitarra eléctrica de Matt White, funciona como uma “máquina” compacta, tão demolidora no groove (o fim de “Mothra” é um bom exemplo) como ágil e subtil nas composições mais espaçosas (como no início de “Sacred Harp”, na intro de sax tenor, ou em “All is Gladness in the Kingdom”, na intro de trompete). E, num exemplo raro para um ensemble desta dimensão, o disco desenrola-se sem que pensemos em nenhum momento numa divisão entre indivíduos solistas e grupo de apoio, apesar dos frequentes solos virtuosísticos que dada a diversidade, nos fazem adivinhar um colectivo construído com base numa forte cumplicidade e solidariedade entre músicos talentosos e possuidores de diferentes personalidades. E o todo, esmaga, clara e positivamente, a soma das partes, num inteligente esforço de composição e arranjo quer de Steven Bernstein, quer de Matt White afirmando Fight The Big Bull como uma referência dum jazz musculado, mas genuinamente ligado às raízes da música comunitária. “Jemima Surrender”, um original de 1970 de J.L. Robertson (The Band), com arranjo de Bernstein ilustra isso mesmo, com os sopros a assumirem, com eficácia, inteligência e humor, papéis clássicos, mas os vários tempos de groove/funk que se vão ouvindo nos momentos mais enérgicos por todo o disco, estabelecem pontes sólidas com vários tempos e géneros da música popular e comunitária.
Com os 6 originais de White, 2 de Bernstein e o arranjo já referido, Fight The Big Bull transporta-nos por uma viagem acelerada e rica, dando uso praticamente completo às possibilidades expressivas dos músicos individuais e do colectivo, com riqueza tímbrica e técnica, com diversidade e rigor rítmico e trilhando com sucesso o rico filão que (re)une o jazz às músicas populares comunitárias urbanas. “Gold Lions”, com a pesada linha de baixo a lembrar um certo rock independente (poderá lembrar Morphine) é um de muitos exemplos dessa vontade de inclusão e, ilustra simultaneamente, o papel relativamente reservado, mas extraordinariamente impactante e eficaz que Matt White reserva para as suas intervenções solistas.
Nem “tudo é felicidade no reino”, sabemo-lo bem, mas ao ouvir “All is Gladness in the Kingdom” torna-se bem evidente que, com felicidade, criatividade, talento e energia, podemos afirmar tal coisa e, por uns minutos— os que dura a fruição do disco—, a afirmação funciona como um decreto.
Quem ouve, agradece.

All is Gladness in the Kingdom, Fight The Big Bull (feat. Steven Bernstein)

Clean Feed, Lisboa, 2010
Gravado em Richmond, Virginia, EUA, 2009

  • Jason Scott sax tenor e alto, clarinete
  • J.C. Kuhl sax tenor, clarinete
  • John Lilley sax tenor
  • Steven Bernstein trompete, slide trompete
  • Bob Miller trompete
  • Reggie Pace trombone
  • Bryan Hooten trombone
  • Matt White guitarra
  • Cameron Ralston contrabaixo
  • Brian Jones percussão
  • Pinson Chanselle trap kit
  • Eddie Prendergast baixo eléctrico (faixa 7)
Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 30 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Sei Miguel: Esfíngico

Esfíngico, Sei Miguel (Clean Feed)
Esfíngico, Suite for a Jazz Combo, Sei Miguel

CLASSIFICAÇÃO: 2.5/5

A estreia de Sei Miguel na Clean Feed dá-se com a edição deste “Esfíngico”, com o subtítulo de “Suite for a Jazz Combo” e com a interpretação dum combo com várias particularidades, composto por alguns nomes ilustres da improvisação mais livre e/ou “menos idiomática”, dos quais se destaca eventualmente Rafael Toral, apesar da sua sensibilidade e das suas aproximações teóricas a uma certa ideia de jazz ou das suas estratégias.
Mas “Esfíngico”, com o rigor estrutural que se adivinha, não dependeria desta ou daquela ideia de instrumentação mas, de forma mais evidente, de métodos e estratégias interpretativas e possibilidades tímbricas que Sei Miguel reconhece no grupo que lidera.
Uma das principais características da música apresentada nesta suite, de resto, é a clareza estrutural e um certo contexto ou enquadramento quase académico que permite identificar os momentos, a lógica das sequências e as estratégias em uso (momentos de pergunta-resposta e/ou imitação, abordagens pontilhísticas nas marcações rítmicas, identificação de solistas, etc).
A capacidade interpretativa dos diferentes músicos, neste contexto, é, em alguns casos, surpreendente, principalmente pelo rigor e contenção que atravessam a totalidade do disco, assegurando a “pureza” composicional mas, eventualmente, diminuindo o risco ou, pelo menos, a organicidade final da obra. Apesar de intelectualmente estimulante, a realização do conceito pode resultar demasiado asséptica.
Ao nível interpretativo, o encontro entre Sei Miguel e Fala Mariam, cuja prestação me parece merecer um destaque pela positiva, resulta interessante e rica, e Rafael Toral, apesar da dificuldade inerente à integração de instrumentos puramente electrónicos com os sopros, domina a linguagem e a técnica a um nível que lhe permite interpretar e reagir de forma orgânica e natural. Pedro Lourenço e César Burago, pelo papel composicional que desempenham, mas também, aparentemente, por alguma dificuldade em encontrar os registos tímbricos mais adequados e uma possibilidade de fluidez de discurso, que seria um útil ponto de apoio para o ouvinte, considerando a complexidade das estruturas, prejudicam, em alguns momentos a fruição do disco, com destaque para o papel desempenhado por César Burago no 3º andamento (Pássaros).
De forma global, a escrita de Sei Miguel parece ser demasiado cerebral e, neste caso concreto, o disco oscila entre momentos de grande qualidade e interesse, onde alguns músicos afirmam ideias claras e/ou partilham em duo, com momentos de rigidez, espera e aparente hesitação, em que intervenções aparentemente gratuitas ou fortuitas prolongam paisagens relativamente desérticas.

Esfíngico, Suite for a Jazz Combo, Sei Miguel

Clean Feed, Lisboa 2010
Gravado em Lisboa, 2006

  • Sei Miguel pocket trumpet, composição e direcção
  • Fala Mariam trombone alto
  • Rafael Toral modulated resonance feedback circuit
  • Pedro Lourenço guitarra baixo
  • César Burago timbales e pequenas percussões
Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 30 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Peter Brötzmann Chicago Tentet @ Casa da Música

Peter Brötzmann Chicago Tentet
Casa da Música, Sala Suggia
20 de Maio 2010, 22h00

Sobre este Chicago Tentet de Peter Brötzmann já se disse e escreveu praticamente tudo, incluindo que é um dos melhores grandes ensembles de improvisação livre da actualidade e um dos mais interessantes projectos liderados pelo saxofonista alemão e, em Portugal, tivemos já o privilégio de ver e ouvir este ensemble de excepção no Jazz em Agosto de 2008, pelo que as expectativas face à sua presença na Casa da Música eram, compreensivelmente elevadas, mesmo que não tenham chegado para encher a Sala Suggia. Tal facto não pareceu perturbar a impressionante “força de intervenção” que o Peter Brötzmann Chicago Tentet é e o concerto desenrolou-se num nível transcendente, com a estratégia de liberdade e urgência que guia o colectivo a garantir uma espécie de ondulação natural entre alguma clareza lírica duma afirmação solista ou dum duo e o sempre esmagador clímax colectivo, calmamente separados por uma gestão gradual e natural das energias, sinergias e cumplicidades dos 11 músicos nas suas diversas combinações, em arranjos estruturais que parecem demasiado bons e eficazes para não serem intencionais e previamente negociados, mas, pelas mesmas razões, aparentemente impossíveis de gerar de outra forma que não através da confiança absoluta na energia musical.
E essa energia musical primária, assim como a confiança que estes músicos parecem nela depositar (mais até do que uns nos outros), é o que verdadeiramente transforma os concertos deste ensemble numa experiência impressionante: há qualquer coisa de ritual, natural e orgânico na forma como, da urgência de uma afirmação individual (cada um destes músicos parece capaz de soltar um grito musical quase espiritual, aceitando talvez em Albert Ayler, via Brötzmann ou directamente, uma certa figura tutelar), se constrói um corpo colectivo que acolhe e amplifica esse “grito” ou “lamento”, incorporando mais e mais “vozes” até ao paroxismo onde, extraordinariamente e apesar da enorme energia empregue por todos os músicos, se consegue, a espaços e por sobre a massa sonora global, compreender apelos individuais, seja pela sobre-energia— a que Brötzmann, Gustafsson e Bishop conseguem recorrer de forma fisicamente espantosa—, seja pela acuidade rítmica ou tímbrica, seja pela oportunidade ou carga emocional das intervenções. E o colectivo, aparentemente grande demais ou poderoso demais, identifica e assinala esses momentos como pontos de apoio da progressão dinâmica, ora abrindo espaços, ora mudando a direcção do seu crescimento, num processo tão natural como espantoso.
E ao longo do concerto as vagas sucedem-se, mas só os mais distraídos ou mal-intencionados confundem o carácter cíclico do envelope dinâmico com uma repetição aborrecida ou obsessiva: a cada abertura ou recuo, o material que se apresenta, afirmado de novo ou descoberto no meio da massa sonora, é fresco e, frequentemente inesperado, tão lírico como fértil. Os espaços permitem-nos descobrir as riquíssimas personalidades individuais, mas também as cumplicidades que estabelecem com o líder do agrupamento e com alguns dos seus cúmplices instrumentais, permitindo compreender de forma mais profunda a própria constituição do ensemble.
E o próprio movimento dos músicos no palco, assim como a estratégia de amplificação que privilegia o colectivo, criando zonas de “foco” para onde alguns dos solistas se dirigem, em momentos de maior urgência, como aconteceu com Ken Vandermark no clarinete e Joe McPhee no trompete, contribui para a afirmação duma experiência quase ritual e marcadamente interior, genuinamente ligada às raízes colectivas, populares e espirituais do jazz.
Talvez seja isso que transforma a experiência do concerto em algo de vagamente hipnótico e profundamente perturbador, mas esse efeito subjectivo e pessoal depende exclusivamente do extraordinário talento, energia, criatividade e generosidade dos 11 músicos em palco, unidos nessa espécie de “fé na música” ou na sua energia, que os conduz na improvisação e os mantém ligados, enquanto manifestam a sua presença individual.

Peter Brötzmann Chicago Tentet

  • Peter Brötzmann saxofones, clarinete
  • Mats Gustafsson saxofone
  • Ken Vandermark saxofones, clarinete
  • Joe McPhee trompete
  • Johannes Bauer trombone
  • Jeb Bishop trombone
  • Per-Âke Holmlander tuba
  • Fred Lonberg-Holm violoncelo
  • Kent Kessler contrabaixo
  • Paal Nilssen-Love bateria
  • Michael Zerang bateria
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Curso Profissional de Instrumentista de Jazz

Curso Profissional de Instrumentista de Jazz no Conservatório de Música da JOBRA
Branca, Albergaria-a-Velha
Primeiro Curso Profissional de Instrumentista de Jazz do País

O Conservatório de Música da JOBRA, localizado na Branca (Albergaria-a-Velha), inclui na sua oferta formativa de Cursos Profissionais (10º, 11º e 12º ano) a vertente “Instrumentista de Jazz“, aguardando homologação por parte da ANQ (Agência Nacional para a Qualificação) para iniciar o seu funcionamento já no ano lectivo 2010/11.
O Conservatório de Música da JOBRA será assim a “primeira Escola de Ensino Oficial Artístico em Portugal a oferecer a possibilidade de formação de quadros médios na área do Jazz“. O Curso Profissional, com a duração de 3 anos, tem as opções de saxofone, trompete, trombone, voz, piano, guitarra, contrabaixo, vibrafone e bateria e no seu corpo docente contam-se reconhecidos intrumentistas do panorama nacional e professores das principais instituições de ensino desta área, incluindo a ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo), Escola Superior de Música de Lisboa e escola do Hot Club de Lisboa.

Jeffery Davis, Óscar Graça, Alexandre Frazão, Marcos Cavaleiro, Hugo Alves, Carl Minnemann, Lars Arens e Nuno Ferreira são alguns dos docentes deste curso que se desenrolará nas instalações na Branca que “foram consideradas pela DREC como as melhores instalações para o ensino artístico da Região Centro”.

Mais informação em http://cmjcursosprofs.wordpress.com/

Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 32 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.

NOTA POSTERIOR: No dia 7 de Outubro foi publicado em Diário da República a criação do curso de instrumentista de jazz (pdf aqui).

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jazz.pt | Jamie Baum Septet @ BragaJazz 2010

Jamie Baum Septet @ BragaJazz 2010
Theatro Circo, 13/03/2010

O concerto do septeto liderado pela flautista nova-iorquina Jamie Baum encerrou o BragaJazz num já esperado encontro inteligente e articulado entre o jazz e a música erudita, buscando nesta última algumas referências tímbricas, pouco vocabulário e muitos conceitos estruturais. O septeto, pela própria configuração instrumental (as 2 flautas de Jamie Baum, o trompete de Ralph Alessi, o sax alto e o clarinete baixo de Doug Yates, a trompa de Vincent Chancey, o piano de George Colligan, a bateria de Jeff Hirshfield e o contrabaixo de Johannes Weidenmueller), tem a capacidade de soar como uma pequena orquestra de sopros e as composições de Baum exploram precisamente os territórios onde a música erudita e o jazz se encontram naturalmente, procurando referências em compositores como Charles Ives— a quem é dedicada uma suite no mais recente trabalho discográfico, da qual se ouviu um andamento no concerto em Braga—, mas assegurando uma performance jazzística de grande nível pela escolha dos músicos que a acompanham e pelos espaços e estruturas para os solos. É curioso ouvir um grupo tão pequeno e recordar as orquestras dirigidas por Hollenbeck, por exemplo, mas, de facto, existem paralelos na escrita que são incontornáveis e apresentam o septeto de Jamie Baum como um agrupamento poderoso e flexível na exploração duma linguagem a que se pode chamar “cosmopolita”, no território do jazz.
Apesar da qualidade da proposta e dos intérpretes, o Theatro Circo manteve-se morno, com o público a denotar, eventualmente, uma certa impaciência face à duração dos temas ou à cadência menos rápida e/ou pouco swingada de grande parte do concerto. Mas os momentos de altíssimo nível protagonizados, a título de exemplo, por Doug Yates, quer no sax, quer no clarinete baixo, com algum destaque num dos temas mais frenéticos da noite, fizeram a sala aquecer ligeiramente.
O concerto estendeu-se por uma apresentação de composições de Jamie Baum, nomeadamente algumas das registadas em “Solace” (Sunnyside Records), tendo como principais solistas, além da líder do septeto, particularmente interessante na flauta alto e do já referido Doug Yates, o trompetista Ralph Alessi, com uma abordagem e vocabulário marcadamente mais jazzístico e o pianista George Colligan, mais próximo dum certo cosmopolitismo académico presente na raiz das composições.

Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 30 da revista jazz.pt, integrado no report global do Braga Jazz. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Ulrich Mitzlaff e Miguel Mira: Cellos

Cellos, Mitzlaff / Mira (Crative Sources)
Cellos, Ulrich Mitzlaff e Miguel Mira

CLASSIFICAÇÃO: 4/5

Seria interessante observar a produção musical de Ulrich Mitzlaff, o violoncelista e compositor alemão radicado em Portugal, especificamente do ponto de vista dos duos de cordas em que participou ou que dinamizou. A audição deste duo com Miguel Mira é, de facto, indissociável da audição do duo com o contrabaixista Miguel Leiria Pereira ou com o violinista Carlos “Zíngaro”, para quem teve o privilégio de ter o contacto com todos os projectos.
Mas não existe uma lógica de integração ou continuidade deste projecto com os outros referidos, mesmo que algumas estratégias sejam comuns. O duo com Miguel Mira é, de facto muito mais marcado pela duplicação do instrumento explorado por músicos com personalidades bastante distintas, anulando o efeito em projectos anteriores de aproximação e distanciamento tímbrico e assumindo totalmente a óbvia proximidade dos universos instrumentais, com ambos os intérpretes a explorarem, em cada uma das 7 partes que constituem o disco, universos e vocabulários comuns, muito centrados nas técnicas expandidas no violoncelo, tocando com o arco abaixo da ponte, na ponte e no corpo, fazendo amplo uso de percussões no corpo, com pizzicatos próximos da técnica de contrabaixo e fazendo um uso muito reservado e contido das técnicas convencionais do instrumento, com uma primeira aparição clara já na 2ª parte da peça central do disco “Tripartição” (4ª faixa do disco).
As técnicas expandidas, a ausência de referenciais rítmicos, assim como a abstracção e descontinuidade dos vocabulários usados aproximam este disco das vanguardas da música erudita contemporânea, não fosse o seu carácter eminentemente improvisado e, por isso, reactivo.
O nível técnico é tal que, sem outros recursos que não os instrumentos, Miguel Mira e Ulrich Mitzlaff constróem texturas e efeitos que nos habituámos a ouvir nas músicas electrónicas (como na 3ª parte de Tripartição), mas também movimentos e figuras que poderiam constar duma partitura para virtuosos da música erudita de finais do século XX. As referências conceptuais nos títulos das peças, “Figura”, “Inversão”, “Tripartição”, “Descontinuidade”, “Assimetria” e “Abstracto” são uma eventual chave de leitura para o processo por trás desta colaboração. Se a descontinuidade e a abstracção são conceitos claramente presentes na totalidade do disco, parece-nos que falta alguma assimetria pela identificação mais clara de eventuais discursos alternativos simultâneos e algumas figuras musicais identificáveis que actuassem como referências nesta paisagem rica. A penúltima faixa, “Assimetria”, precisamente, é um óptimo exemplo do que isso significa, num momento de texturas arqueadas em cordas dobradas, sobre as quais se afirma um solo intenso em pizzicato, com posterior inversão dos papéis. Um dos momentos mais cativantes do disco.

Cellos, Ulrich Mitzlaff e Miguel Mira

Creative Sources, Lisboa, 2010
Gravado em Sintra, 2009

Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 30 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.