Toda e qualquer língua interpreta a facticidade da realidade existencial, de «os dados» (les données immédiates) à sua maneira própria e específica. Cada uma das janelas da casa das línguas abre para uma paisagem e para uma temporalidade diferente, para um segmento diverso do espectro da experiência compreendida e classificada. Nenhuma língua divide o tempo ou o espaço exactamente da mesma maneira que outra língua o faz (tenhamos em consideração os tempos dos verbos hebraicos, se assim lhes podemos chamar); nenhuma língua tem tabus idênticos ao de qualquer outra (daí o profundo donjuanismo do acto de fazer amor em línguas diferentes); nenhuma língua sonha exactamente como outra qualquer. A extinção de uma língua, por muito remota e por muito imune que ela seja ao êxito ou à difusão histórico-material, representa a morte de uma visão do mundo única, de um género de memória, de existência actual e de futuridade. Uma língua realmente morta é insubstituível. Encerra aquilo que Kierkegaard nos convidou a deixarmos em aberto se a humanidade quisesse evoluir: «as feridas da possibilidade». Esse encerramento pode ser, para a tecnocracia da informação e do mercado de massas de finais do século XX, um triunfo. Pode facilitar o imperium das cadeias do pronto-a-comer e das notícias via satélite. Para as oportunidades do espírito humano, em permanente redução, é um processo destrutivo.
George Steiner, in “A Paixão Intacta”
Concordo em absoluto com o que Steiner diz acerca da importância de todas as línguas e de cada uma delas. Tenho pena, por isso mesmo, que o debate mais visível à volta do Acordo Ortográfico se faça em torno de meias-verdades e seja sistematicamente obscurecido pelos vários lados da “barricada” artificial. Relevante seria perceber de que modo é que uma alteração na Ortografia se reflecte numa alteração da língua, por um lado e, por outro, quais os compromissos aceitáveis para assegurar a sobrevivência e prosperidade da língua portuguesa, em toda a sua diversidade, num contexto de ataque real e global às línguas “marginais”.
(Vejam no que dá o estudo de disciplinas como Literatura Comparada por mentes propensas à distração, como a minha…)