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jazz.pt | Empty Cage Quartet, Gravity

Gravity, Empty Cage Quartet
Gravity, Empty Cage Quartet

CLASSIFICAÇÃO: 3.5/5

Sobre o Empty Cage Quartet a prestigiada The Wire escreveu que é “uma das melhores coisas no jazz a emergir no novo milénio”. Aos cínicos bastaria dizer que o milénio ainda agora começou, mas depois de ouvir “Gravity” não podemos, com seriedade, ignorar a proposta deste grupo emergente da costa leste. Tanto pela música que apresentam como pelos processos sugeridos. “Gravity”, consiste na interpretação de duas obras, “Gravity” de Kris Tine e “Tzolkien”, de Jason Mears, que se apresentam como processos de fazer nova música, modulares, contendo um conjunto de possibilidades rítmicas e melódicas, incluindo palíndromos e complexos exercícios de simetrias melódicas e harmónicas, assim como explorações numéricas, que possibilitam interpretações lineares e recombinações da responsabilidade dos intérpretes e das suas escolhas em tempo real.
Sem privilégio aparente de nenhuma perspectiva idiomática, a música do Empty Cage Quartet lembra, a espaços, um híbrido de jazz e música conteporânea erudita, por exemplo quando Jason Mears opta pelo clarinete, em “Tzolkien 1+13”, reminiscente de Anthony Braxton, mas pode aproximar-se dum jazz livre, próximo das estratégias harmolódicas de Ornette Coleman, como em “Gravity: Section 8”, ou do M-Base de Steve Coleman, por exemplo, mas, na diversidade de abordagens e sonoridades, este quarteto, que parece desdobrar-se em múltiplas personalidades, mantém, misteriosamente, uma identidade bastante particular.
A complexidade conceptual não é audível (não de forma avassaladora, felizmente), mas fornece uma matriz estrutural que permite que as 4 vozes individuais atravessem os mesmos espaços, em ondas largas ou sinuosas e por vezes, de forma bastante angulosa ou em sentidos inversos, mas, nos seus cruzamentos, encontros e desencontros, a música produzida reflecte, de facto, a existência dum sistema intrigante que nos permite identificar os tais “pontos de gravidade”.
Uma música e um sistema que nos desafia, mas não aliena nem os intérpretes, músicos de grande qualidade técnica e criativa- com experiência de formação e colaboração com nomes como Milford Graves, Wadada Leo Smith, Vinny Golia, Nels Cline, Ken Filiano, Marilyn Crispell e Charlie Haden- nem os ouvintes.

Gravity, Empty Cage Quartet

Clean Feed (2009)
gravado em Nova Iorque (2008)

  • Jason Mears saxofone alto, clarinete
  • Kris Tiner trompete
  • Ivan Johnson contrabaixo
  • Paul Kikuchi bateria, percussão
Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 29 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt #31 já nas bancas

jazz.pt #31

Na capa: Evan Parker no Jazz em Agosto e Danilo Perez na Lisbon Jazz Summer School.

Lá dentro, muita leitura interessante, incluindo as minhas modestas contribuições:

  • Chicago Tentet de Peter Brötzmann na Casa da Música
  • “Violino Escravo – A True Story of a Slave Violinist”, de Jon Rose na Fundação de Serralves
  • 4 lançamentos Clean Feed:
    • “West”, Lawnmower (2/5)
    • “Seeing you see”, Keefe Jackson Quartet (3/5)
    • “Deluxe”, Chris Lightcap’s Bigmouth (3,5/5)
    • “Dual Identity”, Rudresh Mahanthappa / Steve Lehman (4/5)

Em breve, disponíveis aqui no blog.

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jazz.pt | João Paulo Esteves da Silva & Dennis González

João Paulo Esteves da Silva & Dennis González

Casa da Música, Sala 2 | 16 de Janeiro

Depois da muito bem sucedida edição de “ScapeGrace” (CleanFeed, 2009)— considerado pela jazz.pt o melhor disco nacional do ano— João Paulo Esteves da Silva e Dennis González apresentaram-se na Sala 2 da Casa da Música para um concerto que, para ser fiel ao disco, teria que reflectir a situação/estratégia de improvisação usada que, como João Paulo referiu em jeito de apresentação, haverá gente que não acredite (porque é de fé que se trata) e outros considerarão despudorada.
Mas, acredite-se ou não, é através da improvisação, sem ensaios nem temas escritos, que se constrói o disco e os concertos desta dupla, que até à proposta da editora lisboeta nem sequer se conheciam ou ao trabalho respectivo.
Sem ensaios, nem temas escritos, mas não sem referências: a ampla bagagem musical de cada um dos músicos e a partilha que originou “ScapeGrace” permitem aos músicos e aos ouvintes ancorar esta experiência musical em motivos melódicos e rítmicos que cruzam, no território do jazz contemporâneo, as fortes referências às músicas populares tradicionais que dão corpo a uma parte significativa dos percursos individuais de João Paulo (o pianista que mantém um projecto de exploração da herança da música sefardita em Portugal e que colaborou com Fausto, Vitorino, José Mário Branco, Sérgio Godinho, entre tantos outros) e Dennis González, cuja procura constante de derrubar barreiras passa por integrar no seu discurso linguagens enraizadas nos locais que percorre.
Assim, apesar da estratégia de improvisação e da construção de música completamente nova, ouviram-se na Casa da Música vários dos motivos presentes em “ScapeGrace” e outros motivos familiares, introduzidos ora por João Paulo, ora por Dennis González, que se sucederam no lançamento de introduções a solo para a posterior exploração do duo.
Nesse contexto, a facilidade com que João Paulo acompanha, complementa, cita e desenvolve qualquer motivo, por mais simples que seja, associada a uma eventual retracção por parte de Dennis González, concedeu ao piano um protagonismo desproporcionado, com cadências a solo em cada um dos 7 temas. Era, de resto, aparente a dificuldade do trompetista em acompanhar as rápidas inflexões harmónicas do piano que, muitíssimo inspirado, rápido e eventualmente mais complexo (ou pelo menos mais denso) do que em encontros anteriores, limitava a margem de manobra em termos de fraseado e improvisação, impondo um discurso harmonicamente mais direccionado e fechado. Energia ou “inspiração” a mais de João Paulo que, por vezes, parecia desligar-se da situação de duo, com a anuência do trompetista texano, para regressar, depois de belíssimas (mas por vezes demasiado longas) explorações, onde as raízes populares da lírica de base do duo passava por metamorfoses sucessivas, com recurso a diversas referências e linguagens, desde os nacionalismos nas músicas clássicas eruditas nos séculos XIX e XX, ao jazz técnica e mentalmente exigente de Keith Jarrett ou aos mais próximos Laginha e Sassetti.
Dennis González, por seu turno, parecia dosear cuidadosamente as suas intervenções, estabelecendo motivos simples, pontuando momentos fundamentais e alimentando os processos de João Paulo. Em sentido contrário, apenas ocasionalmente se tornava possível ao trompetista identificar e explorar temas sugeridos pelo piano, mais fechados e enquadrados em contextos harmónicos menos previsíveis. Nesse sentido podemos falar dum duo e duma improvisação “dirigida”, com momentos verdadeiramente fulgurantes, mas com um certo desequilíbrio entre as personalidades musicais em presença.

Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 29 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Dave Burrell na Culturgest Porto

Dave Burrell

Culturgest Porto, 15 de Janeiro

Num contexto muito intimista, com o público disposto em cadeiras à volta do piano, o quase septuagenário e muito empático Dave Burrell, um histórico das vanguardas do jazz, apresentou um recital de piano solo excepcionalmente convencional, quer na forma, quer no conteúdo. Não tanto pela já anunciada revisitação de standards e do songbook norte-americano, processo que faz parte do seu percurso de intérprete, compositor e arranjador— com marcas recentes na colaboração com a cantora Leena Conquest (com quem o vimos no Porto, no grupo de William Parker, em 2009, no concerto dedicado a Curtis Mayfield) e já presente desde 1968, em “High Won, High Two” (Black Lion)—, mas por uma utilização, quer do reportório, quer do piano, muito estrutural e orquestral, e muito pouco “solista”.
As canções de Billy Strayhorn, Hoagy Carmichael, George Gershwin, Duke Ellington, Thelonious Monk, António Jobim e do próprio Dave Burrell foram-nos apresentadas “completas” e sólidas- com as linhas de baixo, os padrões rítmicos, as vozes principais e os riffs, em todas as voltas, coros e codas-, com a expressão ou intenção “solista” de Burrell a infiltrar-se na densidade destas “reduções ao piano”, mais pelas ocasionais derivas harmónicas ou nas suspensões e inversões dos arcos de tensão das canções, do que pela expressão melódica de frases solistas que, sendo de grande qualidade, vigor e virtuosismo, eram, sem grandes excepções, rigorosamente enquadradas numa perspectiva historiográfica da música apresentada.
Solidamente assente no rigor académico e na capacidade de execução que a sua longa formação académica como compositor, arranjador e intérprete parece ter gravado no seu código genético— primeiro na Universidade do Hawaii, depois na Berklee, de onde saiu em 1965 para a cena de vanguarda nova-iorquina, afirmando-se como um dos mais inovadores pianistas do panorama, tendo colaborado com Marion Brown, Pharoah Sanders, Archie Shepp e Albert Ayler, entre tantas outras referências do free e do avant-jazz— Dave Burrell, aparentemente empenhado na redescoberta da capacidade expressiva das grandes canções “clássicas”, nas suas versões “orquestrais” e “intactas”, prestou um tributo às canções, aos seus compositores e arranjadores, numa forma de concerto que, apesar da proximidade física entre o público e o criador, parece ter usado as próprias canções como barreira em substituição do palco, tornando-se o seu solo— normalmente um exercício de grande risco e exposição—, num fluxo organizado e denso, com a solidão e exposição do criador-intérprete a ser completamente “atropelada” pela quantidade de vozes e funções que a sua técnica convocou.
Mas este exercício de enquadramento estrutural das canções operou também, em alguns casos de forma surpreendente, a construção de novas-velhas “imagens” ou “espaços” deste reportório “clássico”: sugeriu imagens de cabaret quase brechtiano para “Embraceable You”, de Gershwin- cuja relação com Kurt Weill é objecto interessante de estudo na definição dum certo “jazz clássico”- e invocou o ambiente das salas de cinema mudo e das suas pianolas mecânicas nos ragtimes originais do próprio Burrell, como “Astoria Rag” ou “Margy Pargy”, mas também em “It don’t mean a thing if it ain’t got that swing”, de Duke Ellington, com uma certa ironia.
Com o (pouco) público que enchia a sala da Culturgest Porto a aderir com algum entusiasmo, mais claro no momento de apresentação dos temas do que nas ocasionais derivas expressivas, Dave Burrell despediu-se com dois temas originais, “The Edge” e “With a Little Time”, que confirmaram a sua capacidade composicional e orquestral na invocação rápida de imagens fortes e no estabelecimento duma narrativa.
De alguma forma, e em resumo, este concerto a solo assemelha-se mais à apresentação de “reduções ao piano” dum reportório que Dave Burrell domina e apresenta com inteligência e vigor, num formato mais comum no universo da música clássica erudita, que pode resultar “estranho” ou pelo menos excessivamente formalizado, académico ou até abstracto, dependendo da experiência pessoal dos ouvintes.

Uma última nota para o piano disponível na Culturgest Porto que, para sermos justos, só disfarçou as suas fragilidades até ao 4º tema, deixando depois no ar uma insinuação permanente de desafinação e fragilidade tímbrica, completamente desnecessária.

Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 29 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Pirouet Records: Transatlânticos (3 discos em análise)

Estes 3 recentes títulos da editora baseada em Munique, Pirouet, têm vários elementos em comum: o papel relevante dos saxofonistas (frontmen de 2 dos discos), a relativa juventude dos seus autores, a afirmação de algumas nuances dum certo jazz transatlântico, com os 3 discos liderados por músicos europeus, mas com a inequívoca presença do jazz norte-americano, não só na escolha de alguns intérpretes norte-americanos genuínos, mas no percurso e formação de todos os músicos envolvidos.

Virgo, Nicholas Thys
Virgo, de Nicolas Thys

CLASSIFICAÇÃO: 2.5/5

“Virgo”, do contrabaixista belga Nicolas Thys, apresenta-nos uma escrita escorreita, sem grandes sobressaltos, mas com assinalável eficácia lírica nos 6 temas (todos da autoria do contrabaixista), apresentados por uma formação coesa e tecnicamente irrepreensível, ainda que em relações algo convencionais, com Chris Cheek e Ryan Scott a explorarem habilmente a combinação do saxofone com a guitarra na apresentação dos temas e no desenvolvimento dos solos, sem momentos de afirmação individual de génio, mas servindo a estrutura dos temas com rigor. Dos 3 álbuns, este é o que se apresenta mais uniforme e que parece arriscar menos, quer na escrita, quer na interpretação, parecendo apostar em criar momentos de grande conforto- que consegue, sem dúvida-, mas correndo o sério risco de não afirmar nenhum traço identitário assinalável. A energia de “Disco Monkey”, tema de abertura, esgota-se rapidamente, e a sucessão de temas relativamente longos, sem particularidades estruturais ou singularidades assinaláveis, e sem significativas variações de humor ou tensão, afirmam uma música quase utilitária, muitíssimo bem executada, mas cuidadosamente planeada para não provocar grandes emoções.

Virgo, de Nicolas Thys

Gravação: Maio 2008, Nova Jérsia (EUA)
Edição: 2009, Pirouet Records, Munique

  • Chris Cheek, saxofone tenor
  • Jon Cowherd, piano
  • Ryan Scott, guitarra
  • Nicholas Thys, contrabaixo
  • Dan Rieser, bateria

Winter Fruits, Loren Stillman
Winter Fruits, de Loren Stillman

CLASSIFICAÇÃO: 4/5

A escrita do britânico Loren Stillman tem características significativamente diferentes, apesar do resultado final adquirir, globalmente, também, uma certa contenção dinâmica. Stillman não faz uso frequente dos moldes harmónicos e melódicos mais vulgares, nem procura estabelecer “prisões” rítmicas e as suas linhas mais sinuosas, distribuídas pelo quarteto e cuidadosamente integradas de acordo com proximidades tímbricas servem, simultaneamente, a estrutura dos temas e a partilha interpretativa, permitindo que a formação opere sem demasiadas restrições “hierárquicas”. As inflexões de registo do órgão de Gary Versace expandem o universo tímbrico expectável dum quarteto desta natureza e a variabilidade rítmica presente, que Ted Poor serve com rigor e criatividade, permite a progressão dos temas com relativa frescura e explorando as diferentes combinações presentes. É realmente notável a capacidade de partilha duma escrita exigente e a forma como os 4 músicos envolvidos encontram e trocam motivos melódicos, harmónicos e rítmicos, com extraordinária subtileza e um apurado sentido de timing, respeitando os necessários espaços individuais, mas mantendo um elevado sentido de compromisso para com a música, a todo o tempo. E, simultaneamente, a forma individual como cada um dos músicos se relaciona com o material base, enriquece-o, dando novas perspectivas e lançando pistas de compreensão e fruição para vários públicos. A inclusão de 2 temas escritos por Ted Poor (“Muted Dreams” e “Winter Fruit”, este último com espaços para os momento de maior intensidade do disco), permite comprovar que este compromisso resulta, de facto, duma forte cumplicidade entre os músicos e as performances individuais são irrepreensíveis, com destaque, eventual, para as capacidades expressivas do saxofone de Stillman.
O contorno global da dinâmica do disco é, ainda assim, relativamente contido, numa opção que lhe confere unidade, mas lhe retira, eventualmente, alguma energia.

Winter Fruits, de Loren Stillman

Gravação: Junho 2008, Nova Jérsia (EUA)
Edição: 2009, Pirouet Records, Munique

  • Loren Stillman, saxofone alto
  • Nate Radley, guitarra
  • Gary Versace, órgão
  • Ted Poor, bateria

Starbound, Robin Verheyen
Starbound, de Robin Verheyen

CLASSIFICAÇÃO: 3.5/5

Por último, o disco do jovem belga Robin Verheyen, agora radicado em Nova Iorque, é aquele onde o contorno dinâmico se expande e a paleta de estímulos se diversifica mais, num esforço de demonstração de possibilidades que poderá custar ao disco alguma coesão ou lógica interna, mas torna a experiência de audição mais rica. Verheyen afirma-se, de forma mais evidente, como “frontmen” e assume a responsabilidade de conduzir a esmagadora maioria dos temas e o seu desenvolvimento obedece frequentemente a alguns dos canônes dum jazz mais clássico, ainda que se note que o vocabulário de Verheyen está marcado por uma cultura musical mais vasta. A escrita parece, de resto, asumir um lugar secundário, com os temas, relativamente simples, a serem entregues à exploração pelo quarteto, onde Bill Carrothers ganha algum destaque, assim como Dré Pallemaerts, muito rigoroso e seguro nas estruturas mais convencionais, mas com um óptimo sentido de oportunidade na resposta pontual às intervenções e flexões solísticas, criando uma base rítmica bastante orgânica e reactiva. As mudanças profundas de tempo e contexto harmónico entre temas, permite que o disco assuma alguns cortes evidentes e desenhe um arco narrativo mais complexo, com “Lamenting”, em que Verheyen opta pelo saxofone tenor a funcionar como ponto de apoio significativo na viagem. O espaço atribuído a cada um dos músicos permite ouvir as configurações habituais dum quarteto desta natureza, com espaço para avaliar a elevada qualidade interpretativa dos músicos que integram este agrupamento com quem Verheyen assegura o seu estatuto de artista residente no CC de Warande (Turnhout, Bélgica). Ainda assim, alguns momentos do disco, como o tema que dá nome ao álbum, “Starbound”, carecem de melhor enquadramento, deixando a impressão de que pouco mais serão do que exercícios de grupo sobre temas ainda incipientes. Verheyen, com 27 anos, apresenta sinais extraordinários de maturidade (na escrita, na interpretação, na técnica e na expressividade) em momentos como “Lamenting”, mas parece revelar ainda alguma insegurança no que diz respeito à construção dum álbum completo.

Starbound, de Robin Verheyen

Gravação: Abril 2009, Munique
Editação: 2009, Pirouet Records, Munique

  • Robin Verheyen, saxofone soprano e tenor
  • Bill Carrothers, piano
  • Nicolas Thys, contrabaixo
  • Dré Pallemaerts, bateria
Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 28 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt| ESSL.BURGER Live!

ESSL.BURGER live!
ESSL.BURGER live!, por Essl.Burger

CLASSIFICAÇÃO: 3.5/5

“ESSL.BURGER live!” é uma edição da netlabel portuguesa XS-Records que regista 2 sessões de improvisação da dupla austro-germânica Essl.Burger, ocorridas em 2007. Esta colaboração entre Karlheinz Essl e Klaus Burger começou em 2004 e a combinação entre os sopros de Burger e a electrónica de Essl realiza-se em contexto de improvisação livre com um nível de fluidez e diversidade discursiva invulgar para um duo desta natureza. As 2 sessões, apesar de pouco separadas no tempo, dão-nos a conhecer uma grande diversidade de universos sonoros, nem sempre coesos, mas geralmente interessantes e, apesar da menor qualidade da gravação realizada no Museu Essl (faixas 3 e 4), o disco na sua totalidade propõe-nos uma experiência bastante completa.
Mas convém apresentar estes protagonistas: Klaus Burger é um notável e reconhecido tubista alemão, músico de vanguarda que Mauricio Kagel disse ser “uma honra para a classe dos tubistas; explora(ndo) incasavelmente o futura da tuba e (…) soprando por todas as suas possibilidades” e que, além da tuba, toca didgeridoo, conchas e cimbasso– um instrumento semelhante ao trombone contrabaixo– expandindo o seu vocabulário sempre em volta de instrumentos de sopro, com grandes extensões e fundamentais sub-graves; Karlheinz Essl é um compositor experimentalista austríaco e figura proeminente ma cena europeia na improvisação com recurso à electrónica em tempo real, devido a ferramentas computacionais que desenvolveu especificamente para processamento em tempo real em contexto de improvisação e interacção. O trabalho de Essl nesta área, centrado à volta do ambiente m@zeº2, apresenta preocupações não só com o desenvolvimento de interfaces que permitam uma reacção e manipulação rápida das realidades sonoras, mas também uma capacidade de interagir com outros músicos em tempo real e improvisar de facto com as ferramentas computacionais. Dois músicos de vanguarda, fortemente implicados com a improvisação e o experimentalismo que demonstram nestas gravações um conjunto vasto de possibilidades quer nos universos sonoros criados, quer nas formas de interacção e reacção escolhidas.
Klaus Burger demonstra um domínio notável dos instrumentos e uma capacidade aparentemente inesgotável de explorar todos os seus parâmetros musicais, transformando o seu discurso numa extensão natural do seu organismo e a música que produz num “ensaio” sobre a relação entre o som e o sopro, ou mesmo a respiração. Karlheinz Essl age e reage de forma fluída, produzindo som e trabalhando sobre o som produzido por Burger (em tempo real e previamente) e a capacidade expressiva, mas mais do que isso, interactiva ou de “interplay” das suas ferramentas, asseguram que este duo apresenta, de facto, uma improvisação em tempo real e são um inidcador das potencialidades muitas vezes ignoradas das ferramentas computacionais como instrumentos de improvisação.
O disco inicia-se, de resto, com uma faixa exemplar pela coesão, pela pertinência musical e sonora das intervenções, pela sua riqueza e complementaridade, pelo diálogo que se estabelece entre os dois músicos e até por um certo sentido estrutural, prometendo, estes primeiros 17 minutos, um disco genial. Infelizmente, a altíssima qualidade destes primeiros 17 minutos– absolutamente a não perder– não se mantém por todo o disco, havendo mesmo alguns momentos francamente fracos, ainda durante a sessão no artact, na faixa 2, quando Essl quebra uma certa lógica instrumental centrada na ideia de sopro, mantida até aí, procurando introduzir novos instrumentos e padrões rítmicos duma forma que soa, no contexto, algo desastrada. A 2ª parte do disco, o concerto no Museu Essl, retoma algumas das boas práticas dos 17 minutos iniciais, sem que se sintam repetições excessivas de materiais, e mantém o interesse, apesar da menor qualidade técnica da gravação, adivinhando-se, especialmente na parte final do disco, o elevado nível performativo e musical que se ouve claramente no início do disco.
Em geral, trata-se de um disco exigente, mas não asséptico nem aborrecido, e a qualidade dos seus melhores momentos não poderá deixar indiferente nenhum apreciador de música, especialmente se se interessar por instrumentos de sopro e por práticas de improvisação.
E está disponível online, para quem o quiser ouvir!

ESSL.BURGER live!, por Essl.Burger

Editora: XS-Records
Data de edição: Junho de 2009

Data das gravações:
1º set: 4 de Março de 2007 | artacts ’07, Festival de Jazz e Música Improvisada em St. Anton (Tirol, Áustria)
2º set: 3 de Junho de 2007 | Museu Essl, em Klosterneuburg, Viena (Áustria)

  • Klaus Burger tuba, cimbasso, didgeridoo, conchas
  • Karlheinz Essl m@ze°2 (laptop & live-electronics)
Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 27 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Samuel Blaser, Pieces of Old Sky

Pieces of Old Sky, capa do disco
PIECES OF OLD SKY, de Samuel Blaser Quartet

CLASSIFICAÇÃO: 4.5/5

Nostálgico e meditativo, como o nome do álbum sugere, este “Pieces of Old Sky”, é um álbum envolvente e resulta duma extraordinária combinação de instrumentistas e abordagens que servem os temas com detalhe e generosidade. Não existe, em nenhum momento no disco, como é habitual quando se conta com a  participação dum baterista como Tyshawn Sorey, uma secção rítmica tradicional: todos os instrumentos, bateria incluída, são vozes melódicas e, mesmo nos momentos mais singelos, existe uma liberdade total da ideia duma pulsação, fluindo as ideias musicais, exploradas amplamente por cada um dos instrumentistas.
A escrita de Samuel Blaser e o seu desenvolvimento pelo quarteto permite compreender o potencial de elementos melódicos simples na afirmação de estados de espírito complexos e a energia emocional e musical flutua de acordo com uma gestão muito criteriosa de cada participação e contando com elevado nível de atenção e capacidade de resposta constante do quarteto, que reage, repete e reinterpreta as intervenções mais significativas, definindo um enquadramento eficaz e encontrando caminhos de desenvolvimento musical aprofundado. O acerto e a coesão tímbrica é notável, especialmente na relação entre o trombone de Blaser e a guitarra de Neufeld que criam diálogos riquissímos. Thomas Morgan funciona frequentemente como ponto de apoio das inflexões estruturais, mas sem nunca ceder a um papel tradicional procurando fraseados relevantes e explorando os harmónicos, por exemplo.
Em temas ritmicamente mais definidos, como “Red Hook” ou “Speed Game”, o papel não convencional de Tyshawn Sorey, torna-se ainda mais evidente: o quarteto toca o riff em uníssono e a sua interpretação faz uso da totalidade da bateria, para tocar não só a componente rítmica do riff, mas também o seu envelope melódico e dinâmico, desenvolvendo posteriormente formas de apoiar e pontuar o desenvolvimento do tema e as intervenções solistas, sem nunca perder a noção da pulsação implícita, mas escapando a qualquer tentação de vulgaridade. A liberdade que esta forma de tocar de Tyshawn Sorey traz ao grupo é fundamental para permitir a escolha de novos caminhos e inflexões eventualmente inesperadas, assim como o seu rigor é surpreendentemente eficaz na afirmação dos riffs.
Assumidamente nostálgico, “Pieces of Old Sky” é também, fortemente evocativo, com um certo carácter cinemático, como acontece com os corais, em duo de Blaser com Neufeld.
Não se deixa, no entanto, encurralar num registo frágil, encontrando os caminhos, quando necessário, para momento mais intensos, como acontece no final de “Mystical Circle”, enriquecendo a experiência global.
A elevada cumplicidade e a extraordinária flexibilidade de todos os músicos presentes garante uma experiência de audição completa, onde o registo límpido e o lirismo inteligente do trombone de Samuel Blaser aponta uma direcção, sem limitar demasiado os caminhos.

PIECES OF OLD SKY, de Samuel Blaser Quartet

Clean Feed (2009)
gravado em Nova Iorque (2008)

  • Samuel Blaser trombone
  • Todd Neufeld guitarra
  • Thomas Morgan contrabaixo
  • Tyshawn Sorey bateria
Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 27 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Rodrigo Amado: The Abstract Truth

The Abstract Truth, capa do disco
The Abstract Truth,
de Rodrigo Amado, Kent Kessler e Paal Nilssen-Love

CLASSIFICAÇÃO: 4/5

“The Abstract Truth” é o segundo disco resultante da colaboração entre Rodrigo Amado, um dos mais proeminentes saxofonistas nacionais e o contrabaixista norte-americano Kent Kessler e o baterista norueguês Paal Nilssen-Love, eminentes improvisadores da cena internacional, secção rítmica regular das frequentes colaborações Chicago-Escandinávia, como as protagonizadas por Ken Vandermark e Peter Brötzmann.

Mas Kessler e Nilssen-Love encontram na presença de Rodrigo Amado, apesar das semelhanças instrumentais com Vandermark e Brötzmann, um desafio singular, já desde “Teatro” (European Echoes, 2006). Repete-se, em “The Abstract Truth” o formato de improvisação colectiva, gravada numa única sessão e a forte personalidade destes 3 músicos resulta, novamente, numa explosão enérgica e vibrante de música “urgente”. Não uma explosão descontrolada, massiva e destrutiva ou avassaladora, mas uma que estilhaça e tanto produz momentos de alguma agressividade, como pequenas construções/destruições efémeras, “urgentes” e enérgicas, ainda que contidas. Amado, Kessler e Nilssen-Love encontraram uma fórmula que lhes permite gerir a energia extrema e a urgência que colocam na música que fazem, sem comprometer a intelegibilidade e a variedade dinâmica que a transmissão e partilha duma complexa mensagem a 3 exige. A receita depende da apurada sensibilidade musical dos 3, da sua capacidade de se ouvirem, de procurarem os seus espaços e cederem tempo a solos e duos, ainda que fugazes, e de partilharem material de forma praticamente imediata, bastando a insinuação de temas ou padrões e respondendo às solicitações do grupo. À energia “crua” dos momentos mais histriónicos, o trio sabe responder com espaço para momentos mais líricos assegurados regra geral por algum do vocabulário mais pungente dos saxofones de Amado, que assegura uma prestação assinalável pela entrega e pela riqueza tímbrica. Mas Kessler e Nilssen-Love demonstram igualmente momentos de grande delicadeza, assegurando, ao longo do disco, uma experiência intensa, mas variada.
Regra geral, a personalidade musical de Rodrigo Amado, promotor deste encontro, parece liderar parte do desenvolvimento das peças, que, com um formato menos longo do que é habitual em registos deste tipo, se tornam menos dispersivas. Mas o tipo de liderança de Amado é, além de discreto e pontual, acima de tudo, musical, pela participação com o seu vocabulário particular, que navega inteligentemente, entre os limites dum jazz “genuíno” e “visceral”, como encontramos em Archie Shepp ou Sonny Rollins, e a liberdade explosiva de um Ken Vandermark, complementados com desenhos melódicos frequentemente não-jazzísticos e até com memórias eruditas.
De resto, todo o trio demonstra um enorme envolvimento no processo e, mais do que isso, um envolvimento informado, fruto da maturação desta colaboração, com soberbas transições e sobreposições tímbricas, notáveis em “Enigma of the Arrival”, entre Amado e Kessler, por exemplo.
Conhecem-se, ouvem-se, respeitam-se, querem comunicar entre eles e com quem os ouve. E o resultado, ainda que abstracto é, sem dúvida, verdadeiro.

+ info: www.rodrigoamado.com

The Abstract Truth, de Rodrigo Amado, Kent Kessler e Paal Nilssen-Love

Edição European Echoes 2009
Gravado em Lisboa, Julho de 2008

  • Rodrigo Amado saxofone tenor e barítono
  • Kent Kessler contrabaixo
  • Paal Nilssen-Love bateria
Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 27 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Jazz no Parque 2009, Regresso à História

Jazz no Parque

18ª edição
18 e 25 de Julho e 1 de Agosto de 2009
Ténis do Parque de Serralves

A edição que marca a maioridade do Jazz no Parque e que coincide com o duplo aniversário de Serralves (20 anos da Fundação e 10 anos do Museu de Arte Contemporânea) teve como principal novidade o facto de se apresentarem 2 projectos originais, resultantes de encomendas do seu programador, António Curvelo, facto que não sucedia desde 2002. As encomendas, dirigidas a Mário Barreiros e a Bennie Wallace, ilustram com rigor a orientação programática deste festival— em rigor, trata-se dum ciclo de 3 concertos— que aposta na divulgação e afirmação dum Jazz de pés bem assentes na história. Se em anos anteriores assistimos a alguns concertos mais “arriscados”, protagonizados por músicos que circulam com gosto por algumas fronteiras estilísticas e se aventuram, a espaços, por algum discurso mais vanguardista, esta edição, em grande parte, graças às encomendas dirigidas, afirma um regresso a um Jazz mais convencional, que celebra respeitosamente o passado e arrisca muito pouco na definição de futuros (im)possíveis.

18 Julho 2009, 18h00
Mário Barreiros
Kind Steps – O Legado de 1959

  • Mário Barreiros bateria
  • Abe Rábade piano e direcção musical
  • Carlos Barretto contrabaixo
  • Avishai Cohen trompete
  • Ben Van Gelder sax alto
  • Jesús Santandreu sax tenor

A Mário Barreiros, António Curvelo sugeriu a invocação do ano mítico de 1959 em que se editaram obras incontornáveis para o futuro do Jazz— como “Kind of Blue”, de Miles Davis, “Giant Steps”, de John Coltrane, “The Shape of Jazz to Come” e “Change of the Century”, de Ornette Coleman e “Mingus Ah Um” e “Blues and Roots”, de Charles Mingus—, ao mesmo tempo que se consolidavam alguns dos alicerces sobre os quais se construía esse futuro— com edições como “Portrait in Jazz”, de Bill Evans, Scott LaFaro e Paul Motian, “Sevem Pieces”, de Jimmy Giufre 3, “Modern Jazz Classics”, de Art Pepper com Eleven ou “Blowin’ the Blues Away”, de Horace Silver. Uma viagem de 50 anos no tempo para a qual Mário Barreiros chamou o pianista galego Abe Rábade, para dirigir um sexteto e se debruçar sobre os propostos “Kind of Blue”, “Giant Steps”, “Mingus Ah Um” e “The Shape of Jazz to Come”, acrescentando “Cannonball Takes Charge”, de Cannonball Adderley e “Anatomy of a Murder” de Duke Ellington.
“Kind Steps – O Legado de 1959”, pelo sexteto de Mário Barreiro e com direcção musical de Abe Rábade foi, assim, a primeira proposta a subir ao palco do Ténis do Parque de Serralves, no dia 18 de Agosto, com Avishai Cohen (trompete), Ben Van Gelder (sax alto), Jesús Santandreu (sax tenor), Carlos Barretto (contrabaixo) e os próprios Mário Barreiros (bateria) e Abe Rábade (piano).
Mário Barreiros e Abe Rábade, na escolha dos temas e nos arranjos, aprofundaram o carácter historiográfico da encomenda e todo o ensemble pareceu empenhado numa reconstituição relativamente fiel, ou pelo menos, académica, dos temas seleccionados. Uma de muitas opções possíveis, eventualmente a menos pertinente, dada a miríade de reconstituições a que este reportório é submetido diariamente em escolas e clubes de jazz. Uma selecção mais criteriosa dos temas a abordar ou um tratamento estilístico- quer nos arranjos, quer na interpretação, quer nos solos- menos “colado” aos originais teria eventualmente sido mais refrescante e poderia mesmo ter-se afirmado como uma estratégia mais confortável para os músicos que, com excepção de Abe Rábade, claramente alinhado com a proposta e Avishai Cohen, o único solista que parecia confortável nas mudanças de registo e se libertou um pouco mais nos seus solos, pareciam demasiado constrangidos.
De forma geral, o concerto em forma de revisitação desta música seminal, mas com mais de 50 anos, poderia ter sido uma oportunidade de perspectivar futuros, mas o ensemble conduziu o concerto de forma quase reverencial, acertando os registos, as sonoridades e os vocabulários de improvisação de acordo com os originais, eliminando quase por completo a afirmação de alguma singularidade. E ao debruçar-se mais sobre as edições menos controversas de 1959 (de Ornette Coleman só tocaram “Chronology”, por exemplo), seleccionando clássicos como “All Blues”, de Miles Davis, “Blue in Green” de Bill Evans/Miles Davis, “Almost Cried” de Duke Ellington, “Syeda’s Song Flute” de Coltrane e “Better Get it in your soul” e “Goodbye Porcupine” de Mingus, que só muito raramente foram tratados como material “novo”, o concerto tornou-se académico e até, em alguns casos, aborrecido, apesar da excelente qualidade técnica dos intérpretes.

25 de Julho de 2009, 18h00
Donny McCaslin Group

  • Donny McCaslin sax tenor
  • Ricky Rodriguez contrabaixo
  • Jonathan Blake bateria

A presença do trio dirigido pelo saxofonista norte-americano Donny McCaslin foi o único concerto que não resultou de encomenda directa do Jazz no Parque e consistiu na apresentação dos álbuns já editados pelo grupo, particularmente “Recommended Tools” (GreenLeaf Music 2008), gravado com Jonathan Blake e Hans Glawischnig. Donny McCaslin apresenta um jazz contemporâneo ancorado em referências históricas sólidas, articulado num vocabulário bem estruturado, dialogante com um universo musical externo, mas próximo— como a música brasileira (Hermeto Pascoal é uma das suas referências) ou a pop (um dos temas é dedicado a Madonna)—, mas um dos factores determinantes no impacto que a sua performance tem sobre o público é o seu virtuosismo e o extraordinário rigor técnico que todo o grupo assegura, sem sacrifício da musicalidade. A significativa capacidade técnica de Donny McCaslin, quer na fluidez e rapidez do fraseado, quer no rigor da afinação e no detalhe tímbrico expressivo, acompanhado a grande nível quer por Jonathan Blake, quer por Ricky Rodriguez, colocam a performance do trio num nível de execução difícil de atingir e permitem uma grande exploração dos temas, cuja construção demonstra à partida uma enorme confiança na capacidade técnica dos intérpretes. Ainda assim, a “força da técnica” não esmaga a musicalidade da performance, fazendo lembrar a máxima dedicada aos bailarinos clássicos e aos patinadores do gelo de que não devem em nenhuma altura deixar transparecer a dificuldade associada aos seus movimentos, já que isso se traduzirá em desconforto para o público. O Donny McCaslin Group cumpre esse requisito clássico, apresentando uma performance envolvente e, em alguns momentos estonteante, com o virtuosismo a servir propósitos musicais.
E se, globalmente, a música do Donny McCaslin Group se mantém fiel a formas clássicas do jazz, a disponibilidade do solista em assumir papéis tradicionalmente atribuídos à secção rítmica, liberta a estrutura do trio para outras explorações e para a afirmação completa de cada um dos intérpretes, que acontece quer em solos, quer em duos, quer na forma de pergunta-resposta.
O concerto evolui, passando revista e reconhecendo algumas das influências menos óbvias de Dony McCaslin, como Hermeto Pascoal e Bill Frisell. O seu registo, recorda, a espaços, e de acordo com os ambientes, a fluidez de fraseado de Michael Brecker ou o timbre luminoso de Jan Garbarek, mas a sua voz afirma-se de forma inequívoca, com o acompanhamento certeiro e cúmplice de Jonathan Blake (com 1 grande solo em “3 Signs” entre várias intervenções notáveis) e a grande qualidade de Ricky Rodriguez, quer em papéis mais tradicionais, quer no desenvolvimento de solos, ou na introdução de temas como “Late Night”, com a devida vénia a Bill Frisell.

1 de Agosto de 2009, 18h00
“Bennie Walace Plays Monk”

  • Bennie Wallace sax tenor
  • Donald Vega piano
  • John Hebert contrabaixo
  • Yoron Israel bateria

Ao saxofonista norte-americano Bennie Wallace, António Curvelo sugeriu uma nova incursão ao universo do génio Thelonious Monk, recuperando um projecto de 1981 do saxofonista do Tennessee. Bennie Wallace, já com uns respeitáveis 62 anos, aceitou o convite com generosidade e entusiasmo, dada a presença regular do reportório de Monk nos seus projectos, o seu enorme potencial e as possibilidades criativas ainda por realizar. Apresentou-se numa formação clássica de quarteto, com Donald Vega, John Hebert e Yoron Israel e entregou-se a um concerto que teve grandes momentos, mas no qual se puderam também notar as naturais fragilidades associadas à sua idade: quer nas dificuldades de articulação mais rápida de algum fraseado, quer na afinação e timing de algumas intervenções.
Mas esses momentos mais frágeis humanizam uma performance marcada pela generosidade e entrega e pelo inconformismo: Bennie Wallace, logo na primeira introdução a solo, em “Twinkle, Twinkle”, mostrou que pretendia explorar e reinventar o genial reportório de Monk, mais do que se limitar a interpretá-lo, e assim o fez, quer nos solos, quer na forma de apresentar os temas. Entre os músicos que o acompanhavam, destaque, pela positiva, para o contrabaixista John Hebert (grande solo em “Heavy Rotation”), muito atento e alinhado com Bennie Wallace e, pela negativa, para o baterista Yoron Israel, a quem parecia faltar convicção na interpretação mais livre e criativa deste reportório.
As flutuações na performance de Bennie Wallace, a quem, por vezes, parecia faltar em forma física o que sobrava em energia criativa marcaram o desenvolvimento do concerto, mas o génio de Monk foi assinalado de forma genuína e momentos como o solo (mesmo a solo) de Bennie Wallace, em “Round About Midnight”, elevaram o concerto a um outro nível, musical e emocional.

Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 27 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.
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jazz.pt | Louis Sclavis e Evan Parker, uma noite de contrastes

12 de Setembro de 2009, 22h00
Casa da Música, Sala Suggia

Duplo Concerto:
Evan Parker Quartet + Louis Sclavis Trio

O dia 12 de Setembro de 2009 fica marcado na Casa da Música, no Porto, com um duplo concerto de peso: no primeiro concerto apresentou-se Louis Sclavis— um dos nomes fundamentais da improvisação europeia e um dos responsáveis pela boa reputação que goza o clarinete, particularmente o baixo, na improvisação e no jazz contemporâneos— em trio com o pianista Craig Taborn e o baterista Tom Rainey, numa colaboração não muito habitual do clarinetista francês com músicos norte-americanos; no segundo concerto, ao trio do incontornável Evan Parker— o saxofonista britânico assegurou já um lugar no panteão dos grandes improvisadores e é uma referência respeitada em todos os quadrantes da música criativa—, com o contrabaixista Barry Guy e o baterista Paul Lytton, juntou-se, para completar um quarteto uma das mais promissoras estrelas da improvisação— com provas dadas recentemente no Jazz em Agosto—, o trompetista Peter Evans.

Uma noite de contrastes, de propostas arriscadas e intensas e improvisação ao mais alto nível.

Louis Sclavis Trio

  • Louis Sclavis sax soprano, clarinete baixo
  • Craig Taborn piano, teclados
  • Tom Rainey bateria

Louis Sclavis, no seu encontro com o pianista Craig Taborn— um improvisador completo, congregando uma sólida formação clássica com incursões em vários domínios da música não erudita, mas com uma intensa carreira de jazzman— e com o baterista Tom Rainey— colaborador regular de alguns dos mais importantes músicos da cena jazzística nova-iorquina— coloca-se, mais uma vez, num território diferente, com ampla margem de manobra pelos meandros do jazz e das músicas não-eruditas, sem a partilha de algumas das referências de raiz marcadamente europeia que explora em alguns dos seus projectos, mas com amplo espaço para caminhos diferentes, dada a competência técnica e criatividade dos seus novos parceiros norte-americanos. E o concerto desenvolveu-se, assim mesmo, resultando claramente do encontro das culturas musicais de Sclavis, Taborn e Rainey, navegando entre referências mais puramente jazzísticas até universos menos “idiomáticos”, passando até por momentos mais “ligeiros”.
Quer com o clarinete baixo, quer com o sax soprano, Sclavis deu conta da sua veia aparentemente inesgotável e a quantidade e diversidade dos temas apresentados permitiu a exploração aprofundada de diversos universos musicais, de forma relativamente estanque. Ouvimos temas de forma mais livre, com recurso a técnicas instrumentais expandidas, sem pulsação definida e com grande exploração de timbres e partilha de sonoridades, ouvimos cadências eruditas virtuosas, quer por Taborn, quer por Sclavis, ouvimos o que poderiam ser excertos duma banda sonora dum “film noir”, jazz europeu “embriagado”, ouvimos explosões massiças de energia, assumidas imitações de swing, beats quase electrónicos, melodias nostálgicas e espirituais… um concerto com 7 temas que se desdobrou em inúmeras possibilidades, envolvendo as personalidades musicais dos 3 intervenientes, claramente guiado por uma urgência de ser coerente a cada momento, mas garantindo a diversidade dos diferentes momentos, que parece ser um dos impulsos de Sclavis.
Craig Taborn empenhou-se na construção deste mosaico com afinco e gosto, explorando muitas das possibilidades instrumentais do piano e demonstrando enorme versatilidade na improvisação e grande rigor na interpretação dos temas, muitas vezes tecnicamente exigentes e estruturalmente complexos. Tom Rainey, igualmente à vontade e muitíssimo seguro, demonstrou o potencial expressivo da bateria, mesmo em universos de grande fragilidade.
E esta forma de expressão “estilhaçada” ofereceu ao público da Casa da Música uma curiosa amostra de diversas possibilidades de “construção musical” que, sendo criativas e dando grande espaço e ênfase à prática da improvisação e à experimentação, não receiam referências idiomáticas, que se conjugam quase em forma de narrativa. Esta que parece ser uma intenção recorrente de Sclavis- que além do virtuosismo técnico, tem a necessária criatividade e versatilidade-, realiza-se de forma notável quando os músicos que com ele partilham o palco se apresentam também a elevado nível técnico e criativo e munidos da versatilidade e da generosidade necessária para essa construção colectiva angulosa. Assim foi com Craig Taborn e Tom Rainey: o trio encontrou a sua narrativa e apresentou-a com clareza, pormenor e entusiasmo.

Evan Parker Quartet

  • Evan Parker sax tenor
  • Peter Evans trompete
  • Barry Guy contrabaixo
  • Paul Lytton bateria

O segundo concerto da noite apresentou a junção do trompetista “revelação” Peter Evans, ao trio de Evan Parker, uma das mais significativas formações do free jazz europeu. Um concerto que se repetiu em Lisboa e que antecedeu a gravação dum novo álbum pela portuguesa Clean Feed, álbum que, a fazer justiça ao concerto, se arriscará seriamente a conquistar todos os galardões possíveis.
Com explorações de forma muito livre e marcadas claramente pelo espírito de Evan Parker de procurar a disponibilidade para ouvir constantemente os motivos para tocar na “voz” dos seus companheiros, o trio recebe o jovem trompetista Peter Evans com enorme disponibilidade e generosidade, partilhando um entusiasmo genuíno pelas suas raras capacidades expressivas. A Peter Evans parece, a espaços, faltar a maturidade ou controlo e, recorre ao seu enorme léxico para “comentar” permanentemente a actividade do colectivo, não conseguindo a eficácia que a contenção de Evan Parker lhe permite, ao gerir as suas intervenções com mais clareza e espaço. Mas a verdade é que o virtuosismo de Peter Evans é quase hipnótico, pelo que não se poderá saber que efeito teria alguma contenção da sua parte.
Ao contrário do primeiro concerto, de Louis Sclavis, com Evan Parker não existe uma narrativa ou uma estrutura pré-determinada, sentindo-se mais um fluxo de energia musical que vai sendo gerado e gerido pelos 4 músicos, num jogo cuidadoso de partilha, afastado de referências idiomáticas e focado essencialmente nas capacidades expressivas dos instrumentos e da sua conjugação.

Mas, como forma de provar que não existe nenhuma barreira entre projectos musicais desta natureza, no final do concerto, Evan Parker, convidou Louis Sclavis, Craig Taborn e Tom Rainey para que, em septeto, pudessem oferecer mais alguma música ao público da Sala Suggia, tendo esse final de noite marcado um ponto muito alto na história da Casa da Música. Improvisação pura, inesperada até— Louis Sclavis entrou em palco já depois do início do tema, ainda a montar o clarinete e Tom Rainey foi colocando os pratos na bateria enquanto tocava—, onde todos geriram o seu espaço em função dum colectivo mais complexo, mais intrigante, com a partilha inesperada de materiais tímbricos, rítmicos e melódicos entre músicos dos 2 agrupamentos e uma alargada exploração do potencial hiper-instrumental, para usar a expressão de Denman Maroney, com Sclavis a responder aos aparentemente inatingíveis agudos de Peter Evans com subgraves do tubo do clarinete-baixo sem boquilha e Craig Taborn a percutir as cordas do piano, em resposta às cordas travadas com ferros no contrabaixo de Barry Guy, aparentemente, sempre de forma controlada e partilhada.

Uma festa bonita.

Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 27 da revista jazz.pt. A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.