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A Cosmética do Inimigo

Fui ver, ontem, a 33ª produção do Efémero – Companhia de Teatro de Aveiro, “A Cosmética do Inimigo”.

A Costética do Inimigo

Parabéns ao Efémero.

As motivações para ir eram variadas e nem todas com a mesma importância:

  1. há uma série de coincidências entre este espectáculo e a Cidade dos Diários:
    • a sala de espera do aeroporto vs. o interface multimodal
    • a sombra de Isabelle vs. a presença de Amélia
    • “o acaso é coisa que não existe” vs. “é isto o acaso e é admirável”
  2. já não via teatro que não fosse feito pelo Visões Úteis há muito tempo e isso não é saudável
  3. acho que nunca tinha visto o Carlos Fragateiro em cena como actor
  4. eles têm a folga desfasada de nós, por isso pude ir

Gostei da experiência. É sempre estranho quando se está habituado a uma linguagem teatral específica, assistir a qualquer outra coisa. Parece sempre pouco natural.
Acima de tudo, o texto de Amélie Nothomb é muito interessante e a adaptação dramática é inteligente e servida por interpretações de qualidade.
Ainda assim, sem pretender armar-me em crítico, apontaria dois aspectos que poderiam ser melhorados e que me marcaram mais (e que assumo que têm a ver com a minha experiência como sonoplasta do Visões):

O carácter literário do texto
É um problema do teatro em geral, que não atinge na produção do Efémero o ridículo que já vi noutros sítios, mas que, ainda assim, cria uma barreira artificial entre o público e a cena, mas também entre os actores e os personagens. De facto, no teatro português costumamos assistir, por caminhos nem sempre lineares, a uma imposição dum discurso literário que cobre a cena com um certo artificialismo e que prejudica as interpretações. É um problema antigo do teatro em geral e que, no teatro em Portugal se agudiza pela inexistência de dramaturgos (escritores de prosa e poesia que tenham escrito “peças”, não passam a ser dramaturgos)… Sem escritores para o teatro (escritores para o teatro são escritores que estão no teatro, que o conhecem, que conhecem as dinâmicas da cena e da contra-cena, que experimentam e percebem o que é viável e inviável num determinado contexto dramático, e em determinada experiência estética), as pessoas que fazem teatro em Portugal vêm-se muitas vezes obrigadas a trabalhar com fontes literárias… o que é óptimo. Mas essas fontes precisam de ser muito bem filtradas até chegarem à cena, porque, como todos percebemos, nem tudo o que reluz numa página dum romance se transforma em ouro no palco. Muito pelo contrário.
Onde isto se nota mais (como é óbvio) é nas alturas em que tudo indica que estamos a assistir a uma conversa normal (com variações de tensão e intenção) entre duas ou mais pessoas, mas o que sai da boca das personagens são construções elaboradas de mais para serem verosímeis.
Se a coisa for muito bem feita, leva-nos a um nível de distanciamento entre público e cena dramática, porque ninguém se imagina a dizer as mesmas coisas nas mesmas situações. E sabemos que as interrupções são mais abruptas, que quase nunca deixamos um nosso interlocutor levar uma frase a bom porto, ora porque estamos ansiosos por concordar ora porque o queremos mandar à merda.
O discurso literário, pela sua imobilidade característica (por fabulosamente orgânica, fluída e natural que a escrita nos pareça ela é sempre escrita), é uma fonte ingrata a esse nível, porque carece, normalmente, duma interpretação dos diálogos, não duma leitura e essa interpretação subsitui palavras, corta frases a meio, etc, etc…
Porque se isso não for feito, correm-se vários riscos. Um é que o tal distanciamento se afirme, o que pode ser uma opção estética que não me apetece discutir aqui, agora. Mas a pior (e, talvez mais frequente) é que esse discurso literário não filtrado se torne uma barreira para os actores. Uma barreira entre os actores e os personagens.
E aí entra-se na possibilidade de a coisa não ser muito bem feita… ou seja, de termos o público a aperceber-se que aquelas palavras e aquelas frases, que não nos soam naturalmente a nós, também não são naturais para eles.
“A Cosmética do Inimigo”, sem deixar de ser uma esperiência teatral agradável, sofre um pouco deste segundo handicap, parece-me.

Música Original e Sonoplastia
Claro que, para mim, a sonoplastia dum espectáculo de teatro (ou dum filme, ou de qualquer outra coisa), assume uma importância não muito natural. Na “Cosmética do Inimigo”, a música original de Adriano Filipe Silva é muitíssimo bem conseguida, pontuando os momentos fundamentais da peça duma forma que não se limita a ilustrar. Sobre isso, nada a dizer. Mas a opção (que mais uma vez não é exclusiva do Efémero) de realizar a quase totalidade do espectáculo em silêncio, apesar de compreensível, a mim não me convence.
Eu sou um defensor de que, em teatro, o silêncio tem um significado específico. O nosso mundo é feito de solicitações auditivas, aliás, como diz Textor Texel, “o corpo é uma cidadela (…) e o ouvido é a entrada que está pior guardada”, pelo que aquilo a que nós chamamos silêncio, na vida real, são apenas os momentos menos densos da paisagem sonora. No teatro, como quase tudo é ampliado, também o silêncio aduire um peso diferente. Estar em silêncio numa sala de teatro (por muitas tosses, pigarreios e coisas que tais que o público produza) é uma experiência forte que, por isso mesmo, deve ser doseada.
Alguém me perguntava, há dias, porque é que há tantos “ruídos” e tanta preocupação com o ruído no meu trabalho como sonoplasta. Ao contrário do que possa parecer, a resposta é “para que as pessoas não pensem nisso. As pessoas (esta é a minha teoria), estão mais sensíveis aos estímulos a aprtir do momento em que entram numa sala de teatro. Por isso é que, por mais “naturalista” que seja a abordagem, a iluminação, a cenografia, os figurinos e adereços e a banda sonora têm um peso grande. As pessoas não olham para um par de jeans e pensam “é só um par de jeans”, pensam “ah!ah! é um par de jeans”… O mesmo se passa com o som. As pessoas não pensam (e estou a usar aqui a palavra “pensam” duma forma muito abrangente; seria mais correcto “apreendem”) que o silêncio possa ser só isso. O silêncio é a indicação de que vai acontecer alguma coisa (vai começar o espectáculo, vai ser dita uma verdade fundamental, vai…).
Nesse sentido, e com a promessa de que um dia destes volto a esta questão do silêncio em teatro, eu diria que na “Cosmética do Inimigo” a música original é uma aposta ganha, mas a sonoplastia deixa bastante a desejar, porque os contrastes entre os momentos pontuados musicalmente e o resto criam fronteiras artificiais…

Além disso, numa nota mais técnica, sou adepto dum desenho de som que evite colocar as fontes sonoras no proscénio, misturando-as ou com a cena ou com o público. É só o meu lado anti-convencional a falar, mas acredito que beneficia quase sempre a experiência teatral.

Mas, saí do Estaleiro Teatral satisfeito.
Se escrevo estas linhas e aponto alguns defeitos é porque muito gostaria de ter direito a retribuição.

E, se bem percebo esta produção do Efémero— com encenação do Rui Sérgio e Fragateiro em palco— como uma afirmação do “regresso” da companhia, acho que temos todos razões para estar entusiasmados.

Haja público (e ontem, mesmo sendo segunda-feira, havia o que é um óptimo sinal).

Para terminar, a ficha técnica do espectáculo e a sinopse, para que tenham mais razões para ir e convencer os amigos.

“A Cosmética do Inimigo”, de Amélie Nothomb
encenação de Rui Sérgio
interpretação de Carlos Fragateiro e Jorge Fraga
12 de Maio a 12 de Junho – Quinta a Segunda às 21h30, Domingos às 16h
7,5€ – preço normal
5€ – preço estudante/C.jovem
4€ – preço reduzido à segunda-feira
preços especiais para grupos

FICHA TÉCNICA
texto: Amélie Nothomb
encenação: Rui Sérgio
dramaturgia: Carlos Fragateiro e Jorge Fraga
espaço cénico/iluminação: Vítor Correia
música original: Adriano Filipe Silva
figurinos: Elsa Marques
interpretação: Carlos Fragateiro, Jorge Fraga, Sofia Santos e Ivo Prata
produção/direcção de cena: Eduarda de Almeida
assistente de produção: Ivo Prata
secretaria/bilheteira: Pedro Ferreira
costureira: Augusta Belinho
montagem: Efémero-CTA
design: Zé Pedro Ramos

SINOPSE
Os nervos de Jérôme Angust já estavam em franja quando a hospedeira anunciou que, devido a problemas técnicos no avião, o voo iria sofrer um atraso indeterminado.
Foi na sala de espera do aeroporto que tudo começou. Sabia que ia ser ele. A vítima perfeita. O culpado previamente escolhido. Bastou-lhe falar com ele. E esperar que a armadilha se fechasse.
O cenário estava montado. Isabelle… a sombra de Isabelle dominava o espaço. O duelo, o confronto entre Jérôme Angust e Textor Texel adivinhava-se… mortífero. Foi na sala de espera de um aeroporto que tudo acabou. Seja como for, o acaso é coisa que não existe.

mais informações: telf. 234386524, mail@efemero.pt, www.efemero.pt

Um comentário a “A Cosmética do Inimigo”

Completamente de acordo em relação ao que dizes sobre o lugar do silêncio no teatro. Porque uma coisa é compor umas musiquinhas (não desfazendo claro) para reforçar determinados momentos do espectáculo, outra, completamente diferente, é trabalhar um texto sonoro que acompanha o texto literário e que está sempre presente. Neste contexto é claro que o silêncio tem que ser uma opção deliberada, cuja duração e intensidade terão que ser trabalhados da mesma forma que o ruído ou o som ou ou a música ou o quer que se lhe queira chamar.
Sempre mais próximo do cinema que do teatro, lembro-me, a este respeito, do pioneirismo do David Lynch e do que tem feito o Gus Van Sant nos seus filmes mais recentes.

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