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Abençoados os pobres de espírito

Hoje, na Universidade de Aveiro, realiza-se a Benção dos Finalistas. Esta cerimónia que se realiza um pouco por todas as academias do país deixa-me doente, irritado e deprimido.

Por um lado, há a hipocrisia extrema e muito portuguesa de encerrar um período em que se cometem todos os excessos e todos os pecados, quase por obrigação, com uma cerimónia religiosa, bem comportada, para emoção das famílias e satisfação de egos parolos e provincianos.

Depois há esta doença social profunda e muito mais debilitante do que se pensa de aceitar a ideia duma religião dominante e da “normalidade” de se organizarem cerimónias para multidões que se supõem diversas, mas unidas nesse padrão quase nunca praticado e cada vez menos professado. A associação entre a vontade popular (ou estudantil, neste caso) de celebrar ou assinalar com pompa e circunstância um momento mais ou menos determinante com a incompreensível e muito pouco debatida necessidade da sua sacralização é um sintoma claro da pequenez do nosso país. Da nossa pobreza de espírito.

Não questiono (nem tal me passaria pela cabeça) que os estudantes, individualmente ou em grupo, sintam uma necessidade de integrar na sua eventual prática religiosa estes momentos. É natural. O que não é nada natural e resulta apenas e só da perigosa presunção nacional de que, a não ser que nos manifestemos em contrário, somos todos católicos e que ninguém se incomodará com a imposição dessa religião dominante porque “sempre foi assim” e toda a gente sabe que até somos “tolerantes”, é que as instituições (Universidades, Órgãos de Soberania, Associações de Pessoas, etc.) não compreendam a necessidade de fronteiras claras e definidas entre a sua esfera pública e a religiosidade presumida.

Países com uma maior presença de diversas culturas e religiões, que não admitem (porque não podem) que religiões historicamente dominantes se confundam com a expressão do que é público e colectivo, não limitam a liberdade religiosa de ninguém ao atribuir exclusivamente às igrejas e aos indivíduos a responsabilidade de organizarem as suas práticas.

O envolvimento que os nosso poderes públicos, das Câmaras aos Governos, passando pelas Universidades, corporações de Bombeiros, colectividades várias e Associações de Estudantes, por exemplo, continuam a assumir com a Igreja Católica é, por isso mesmo, uma manifestação triste da nossa pequenez e da nossa pobreza de espírito.

Não sei se isso nos garante a benção, mas acho que garante parte do nosso atraso civilizacional.

11 comentários a “Abençoados os pobres de espírito”

Boa análise. Gostei da forma como mostras a hipocrisia com que as pessoas metem um lado religioso numa festa, apenas para “limpar” toda a porcaria que fazem durante esses festejos.

Concordo que as instituições públicas se deviam demarcar de qualquer religiosidade. Existem mais religiões para além do cristianismo, por isso não percebo porque raio as instituições públicas se colam a esta religião e esquecem as outras.
Bem, mas eu defendo o fim de todas as religiões. Acho que, sem elas, o mundo estaria bem melhor.

Eu não dou grande valor à missa da benção das pastas, até que nem fui (por impossibilidade) à do meu ano de finalista.

Mas todo este post recorda-me aqueles grupos de alunos que de certa forma decidiram ou foram excluídos dessas cerimónias festivas, fazem beicinho e amuam.

Sinceramente, o teu post não tem ponta por onde se pegue. A referência “missa” e o facto de existir um padre é quase irrelevante. Os alunos estão lá a comemorar o seu ano de finalistas e, posteriormente, a serenata.

Quanto aos excessos, toda a gente os comete. Eu nunca fiz parte da praxe e apenas fui enquanto caloiro, mas esses comentários sectaristas e generalistas são totalmente desnecessários.

Mário: estive quase para não responder ao comentário, mas não resisto. O que não tem “ponta por onde se lhe pegue” é achar que a defesa intransigente do laicismo no Estado e nas Universidades é um problema de “amuo”. Relê o post, se quiseres, pensa no que está escrito e no que não está (sou um orgulhoso radical anti-praxe mas não foi sobre isso que escrevi desta vez) e olha para o envolvimento da Universidade e das Associações de Estudantes na “benção das pastas” pelo olhos dum não-católico.
Cheguei a propôr, na qualidade de legítimo e eleito representante dos estudantes de Arquitectura na Assembleia da Federação Académica do Porto, que essa cerimónia fosse da exclusiva responsabilidade da(s) igreja(s) interessadas ou que, em alternativa, se organizasse uma cerimónia ecuménica.
Isso e a recusa em aceitar uma intervenção do Dux Veteranorum numa Assembleia da FAP fizeram-me alguns “inimigos”, de que muito me orgulho.

João,

sou um orgulhoso radical anti-praxe mas não foi sobre isso que escrevi desta vez)

Isto esclarece tudo. Tens direito a essa posição, só que isso tira qualquer credibilidade ao teu texto, pois não é escrito de forma isenta. Não é uma observação factual, é um âmago a juízos valorativos e pessoais.

O facto de um Estado ser laico não significa que grupos de pessoas não possam criar as suas próprias instituições e regras. A Praxe é uma instituição e como instituição de direito pode muito bem decidir se segue rituais Cristãos, ateus ou satânicos. Ninguém é obrigado a participar na praxe (eu só o fiz enquanto caloiro) e só vai quem quer.

Continuo a ver o teu post como questões por resolver do passado.

Disclaimer…

Não pensava que fosse preciso, mas pelos vistos…
Este é um blog pessoal no qual são veiculadas as opiniões do seu único autor. Essas opiniões são enviesadas, parciais, comprometidas com convicções profundas e assumidas com orgulho, sempr…

Mário,
Nenhum dos teus comentários foi escrito de forma isenta e por isso também valem o que valem. Mas se queres levar a coisa para praxe como instituição, excessos cometidos serem normais e etc. É fácil fazer tremer esses teus argumentos: Tudo isso é cada vez menos a tradição e cada vez mais o motivo para bebedeira até cair para o lado. E contra factos não há argumentos. É isto que se vê nos recintos das queimas e é o que se viu numa reportagem que passou num dos telejornais deste fim de semana a propósito da queima de Coimbra onde todos os entrevistados referiam que a queima é para beber. Interrogo-me sobre se a grande maioria deles saberá afinal o que é a queima das fitas. Isto são factos, o resto são adereços e pinturas para encobrir esta realidade e o vazio cultural da maioria dos estudantes do ensino superior.

Sérgio,

O meu comentário é isento porque nunca fiz parte da praxe. Logo, posso falar em seu abono.

Por fim, esse argumento de beber é totalmente irrelevante. Os nórdicos e os anglo-saxónicos também bebem muito e quem dera a Portugal estar ao nível de qualquer um desses países.

A queima é para comemorar e, claro, isso envolve algum álcool. Não vejo mal nenhum nisso, ou será que me enganei e vim parar ao Movimento Conservador, Moral e Católico do burgo?

Parece-me que, pelo menos de minha parte, te enganaste. Porque eu não só sou estudante, como vou à queima, como bebo os meus copos, e também já consumi as minha dose de canabis e derivados.

Tu não és isento porque participaste na praxe. Eu é que sou o presidente da junta. (lol) Ou melhor, eu é que sou isento porque eu é que nunca participei na praxe nem enquanto caloiro.

Quanto aos nórdicos e anglo-saxónicos de que falas, de facto bebem muito. A diferença é que são responsáveis. Quando é para trabalhar, trabalham. Andam a semana inteira sem nunca se atrasarem ao trabalho,etc. No fim de semana divertem-se e bebem os seus copos, mas não ao domingo à noite, porque sabem que na segunda é dia de trabalho. “Nós” por cá, se for caso disso, vamos para os copos todos os dias e esquecemos as responsabilidades quer profissionais quer estudantis.

Interessante análise, João. Ainda este Domingo estava a pensar na leviandade e quase desprezo com que alguns finalistas participam na Benção. Como Cristão, sinto um certo desrespeito através dessas atitudes e, sim, penso que seria bastante mais sincera uma cerimónia a nível de cada Igreja (se bem que com apoio da Universidade e/ou Associação Académica, caso fosse solicitado). Dúvido que tantos estudantes se dessem ao trabalho de aparecer.

Já agora, qual é a tua opinião em relação ao traje académico? Como estudante da UA, noto que começa a surgir uma (ainda) pequena corrente de opinião que defende que este deixe de ser um símbolo da chamada “tradição académica”, mas sim da Universidade em si, deixando de ter qualquer tipo de associação a praxes e afins. Penso que seria interessante ver a reacção da Associação Académica caso esta corrente crescesse.

CF: é também por respeito pelas convicções religiosas de quem as tem, que acho que a defesa do laicismo do Estado é importante. Sou ateu, mas (ou, por isso mesmo) tenho um profundo respeito por pessoas que professam as mais variadas religiões. Um respeito directamente proporcional à convicção e coerência de cada um.
Quanto à questão do traje e do seu vínculo à Praxe, instituição obscurantista e anacrónica cuja extinção defendo desde sempre… custa-me aceitar a necessidade dum uniforme ou de qualquer tipo de “folclore” no contexto do ensino superior público, democrático, plural e universal a que a Universidade deveria aspirar. Acho que as Universidades devem fazer todos os esforços para se abrirem ao mundo que as rodeia e descerem do pedestal patético e inútil em que, por vezes, gostam de se colocar.
Mas sim, seria interessante ver como reagiriam os movimentos organizados de estudantes a uma crescente separação entre os vários mecanismos tribais em uso. Se isso contribuísse para o abandono progressivo das práticas mais chocantes, era um primeiro passo.

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