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jazz.pt | Blood on the Floor

Texto escrito por João Martins, a 16/07/2008.
Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 20 da revista jazz.pt, com fotografias cedidas pela Casa da Música.
A publicação do texto neste blog tem como principal objectivo promover a revista: compre ou assine a jazz.pt.

Blood On The Floor, de Mark-Anthony Turnage
pelo Remix Ensemble e solistas de jazz
dirigido por Peter Rundel

Solistas Jazz

  • Peter Erskine bateria
  • John Parricelli guitarra
  • Martin Robertson saxofones alto e soprano
  • Laurence Cottle baixo

Casa da Música, 5 de Julho 2008, 22h00, Sala Suggia

A apresentação de “Blood On The Floor“, obra do compositor britânico Mark-Anthony Turnage escrita entre 1993 e 1996 e estreada nesse ano, em Londres, pelo Ensemble Modern, sob direcção de Peter Rundel e com um corpo de solistas de jazz com Peter Erskine em lugar de destaque, mas também John Scofield e Martin Robertson, é sempre uma ocasião privilegiada para pensar as diferentes relações que o Jazz pode estabelecer com a música escrita / erudita. As opções no processo de criação da peça, o seu próprio desenvolvimento ao longo das sucessivas apresentações, com a introdução do papel do baixo como ponto de encontro entre os dois mundos musicais, em grande parte pela influência de Dave Carpenter e o estado actual da obra permitem-nos compreender possíveis dinâmicas desta relação específica.
A apresentação na Casa da Música, com o maestro responsável pela estreia, com o Remix Ensemble reforçado— que se propõe pela segunda vez, e passados 5 anos, apresentar esta peça— e com um corpo renovado de solistas (Parricelli no lugar de Scofield, por questões de agenda e Laurence Cottle no lugar de Dave Carpenter, devido ao seu inesperado e trágico falecimento semanas antes deste concerto) permitiu ao público já conhecedor da obra o contacto com um objecto mais “amadurecido” e aos estreantes, uma aproximação rigorosa e bem sucedida às intenções de Turnage.
Para lá de considerações de teor mais ou menos filosófico acerca da validade e bondade da estratégia e objectivos de Turnage nesta obra, que agradará a muitos, mas desagrada, naturalmente, aos mais sectários militantes seja da música erudita, seja do Jazz, como refere Erskine na entrevista concedida à CdM, a obra “responde aos maiores desejos e esperança do movimento (…) que começou com Raphsody in Blue de Gershwin e continuou na década de 50 com o movimento Third Stream” e apresenta caminhos reais de contacto entre formas de pensar e fazer a música, ainda assim, difíceis de conciliar.
Blood On The Floor” que resulta duma interpretação inicial de Mark-Anthony Turnage da obra homónima de Francis Bacon, se, por um lado, evolui no contacto inicial com Peter Erskine no sentido de integrar estratégias e vocabulários jazzísticos, explorando estruturas rítmicas permutáveis propostas pelo próprio Erskine e se pode definir como um encontro entre um ensemble contemporâneo erudito e um corpo de solistas de jazz, apresenta-se na realidade como uma peça relativamente convencional a um nível estrutural, onde a presença dos jazzmen parece ter sido “domesticada” logo após as primeiras experiências e é, nesse sentido, “instrumentalizada”, abdicando-se, ao nível interpretativo, das reais estratégias jazzísticas que podem ter influenciado a escrita. Não é uma abordagem nova, nem sequer se pretende com estas considerações criticar negativamente as opções do compositor: a relação necessariamente complexa entre o ensemble e os solistas, a bem duma certa estabilidade interpretativa, relevante no universo da música de tradição clássica, precisa de fronteiras e regras definidas e a opção de Turnage de iniciar e finalizar a obra no “seu território”, reservando dois andamentos centrais (em 9), Needles e Crackdown, para injecções mais claras do vocabulário jazzístico e mantendo uma relativa compartimentação entre os materiais em uso pelos solistas de jazz e pelo ensemble— com excepção de padrões rítmicos de Erskine, das contribuições atribuídas a Dave Carpenter e que permitem uma maior solidez global e dos solos de Martin Robertson, em regra, “dobrados” ora por um solista do ensemble (flauta, trombone) ora pelos saxofonistas do Remix— é uma opção que aproximará “Blood On The Floor“, do ponto de vista interpretativo e como resultado musical global, duma peça do universo erudito e escrito, não muito variável, mas cuja contaminação é claramente perceptível. Aliás, na esteira duma tradição de séculos na música erudita ocidental que procura integrar nos seus processos as linguagens ou os “dialectos” mais estimulantes: Bartok, Ravel, Debussy ou até Lopes-Graça, para citar nomes significativos e diversificados, trouxeram para a sua escrita expressões populares ora próximas, ora longínquas, muitas das vezes, descartando os processos dessas músicas e fazendo delas um uso temático e adaptado. Não será exactamente nessa tradição de princípios do séc. XX que Turnage se inclui, mas não se pode deixar de notar que não são processos jazzísticos os que se destacam na interpretação, ainda que se ponham reconhecer em alguns momentos da obra. Reconhecem-se isso sim, clichés e vícios de linguagem do Jazz em geral e de alguns dos solistas em particular, o que retira à obra alguma da “identidade” ou do “carácter único” normalmente associado ao Jazz.
Feitas as ressalvas, não podemos deixar de concordar com o multifacetado Erskine, quando afirma que Blood On The Floor tem “um incrível potencial” e é, de facto, uma das possíveis e válidas formas de cruzar o Jazz com a música erudita. Claro que “o futuro da música é impossível de prever”, mas a “Passacaglia in Memoriam Dave Carpenter“, escrita propositadamente por Turnage e que abriu o concerto, com o próprio compositor ao piano, solistas e ensemble, terá mostrado que a experiência de 12 anos com “Blood On The Floor” pode ter aproximado Mark-Anthony Turnage duma escrita ainda mais interessante para um ensemble desta natureza, melhorando as perspectivas.

Quanto à interpretação da peça foi dum extremo rigor e qualidade técnica por parte de todos os envolvidos, mostrando maior maturidade por parte do Remix Ensemble, uma imensa capacidade de trabalho de Laurence Cottle, com a difícil tarefa de substituir Dave Carpenter, e o papel central de Erskine na composição e interpretação. Um êxito, portanto, ainda que o final da peça, relativamente previsível e fechando novamente o ensemble erudito sobre si próprio possa ter desiludido ligeiramente.

Texto escrito por João Martins, a 16/07/2008.
Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 20 da revista jazz.pt, com fotografias cedidas pela Casa da Música.
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