Texto escrito por João Martins. Depois de revisto e editado por Rui Eduardo Paes, foi publicado no nº 25 da revista jazz.pt.
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26 de Abril de 2009, 22h00 | Casa da Música, Sala Suggia
Ciclo Música e Revolução
William Parker: The Inside Songs of Curtis Mayfield
- Amiri Baraka, spoken word
- Leena Conquest, voz e dança
- Lewis Barnes, trompete
- Darryl Foster, saxofones
- Sabir Mateen, saxofones
- Dave Burrell, piano
- William Parker, contrabaixo
- Hamid Drake, bateria
O Ciclo Música e Revolução, que a Casa da Música promove pelo 3º ano consecutivo, procura abordar de forma complementar a influência que as revoluções sociais, políticas e económicas tiveram na produção musical ao longo dos tempos, as práticas musicais associadas a esses momentos de ruptura histórica e as práticas musicas revolucionárias “per se”. As implicações programáticas são complexas e as escolhas necessariamente difíceis, sendo por isso necessário, como os próprios programadores reconhecem, acrescentar, a cada edição, alguns sub-temas ou vectores de entendimento destas relações. Em 2009, enquanto se focou parte da programação nas práticas musicais revolucionárias de Karlheinz Stockhausen, elegeram-se também as lutas do Movimento dos Direitos Civis, nos Estados Unidos da Améria, como forma paralela de enquadramento conceptual, o que resultou num conjunto de concertos, do qual faz parte esta proposta de William Parker, mas também as presenças de The Last Poets e a apresentação da “Sinfonia para Oito Vozes e Orquestra” de Luciano Berio ou de “Coming Together” de Frederic Anthony Rzewski. A contaminação do discurso musical pelo discurso político, ou a própria afirmação do discurso musical como discurso politico, apresenta-se assim em diversas formas durante o ciclo e cruza todo o espectro de músicas e formas estéticas que habitam a Casa da Música. Trata-se dum programa ambicioso e merecedor da máxima atenção.
No caso concreto da proposta de William Parker, o seu recente projecto de homenagem ao célebre compositor e cantor Curtis Mayfield é, sem si mesmo, um manifesto político de extrema veemência. William Parker propõe-se recuperar e reinterpretar algumas canções fundamentais na afirmação da identidade negra norte-amerciana, durante os anos 60 e 70, mas ao escolher Curtis Mayfield como autor de referência, ainda que o faça por motivos estético-musicais, traduz uma opção política. Mayfield era uma figura considerada moderada, nunca tendo aderido aos movimento radicalizados do Black Power, sempre defendendo ideias de paz e advogando o fim dos preconceitos e a aproximação cultural, também através dum prática musical capaz de agradar a negros e brancos. Mayfield é também relevante pela consciência crítica que tinha do papel que os afro-americanos tinha na sua própria opressão, como se compreende na sua colaboraçao no filme “Super Fly”. Mas é interessante notar que William Parker chama ao seu projecto “The Inside Sogns of Curtis Mayfield”, e o concerto apresentado clarifica o sentido deste título. Há, obviamente, a intenção de recuperar temas políticos abordados nas canções originais, ou pelos contextos que que elas foram concebidas, como forma de intervenção política actual (este projecto precede a eleição de Barack Obama e não é indiferente a esse processo). Mas sobre a postura de Mayfield, William Parker sugere a visão complementar dum outro ícone da cultura afro-americana, que é Amiri Baraka, poeta e figura-chave do Black Arts Movement, contemporâneo de Mayfield, mas com uma visão bastante mais radicalizada do que a do cantor de R&B e Soul. E figura pública e política activa hoje, crítico feroz no panorama político norte-americano e voz fundamental para muitas comunidades negras. Não pode haver dúvidas de que a sobreposição da visão e da escrita de Amiri Baraka às canções originais de Mayfield, que são usadas nos concertos como motes e base sobre as quais se constróem longas paisagens de intervenção pela palavra, comentadas pelo som, principalmente dos saxofones irrequietos de Sabir Mateen, são intervenções de carácter político que procuram apresentar uma visão mais radical e extrema do que a que Mayfield deixou nas suas canções.
“Someone blew America up”, diz Amiri Baraka e num discurso forte, elíptico, mas lúcido, vai desenvolvendo a sua resposta, que nos implica a todos. “Who carried the slaves?, Who killed the Indians? Who is not a nigger?”. A todos, menos aos afro-americanos, aparentemente.
O radicalismo ou sectarismo do discurso não se torna o ingrediente fundamental do espectáculo, ainda assim, em parte pela dificuldade por parte do público em compreender excertos significativos das palavras ditas, em parte pelo distanciamento cultural que diferencia e/ou contextualiza de forma imediata alguma retórica e demagogia radical e sectária que nos é estranha da retórica e demagogia radical e sectária que nos é servida quotidianamente nos nossos palcos políticos e sociais e que não aceitaríamos como objecto de arte. Não é, obviamente, indiferente a intervenção musical na qual as palavras do corajoso Amiri Baraka, de 75 anos, são incluídas: o vasto ensemble reunido por William Parker, navega habilmente por territórios familiares de malhas R&B e Soul, com riff de metais e madeiras, e coros cantados com eficácia e alma por Leena Conquest, sobre os quais se procedem ora a solos intencionalmente tensos, principalmente de Sabir Mateen, mas também do próprio Parker e de Dave Burrell, ora a desenvolvimentos mais convencionais, com movimentos entre ambientes mais “espirituais” e mais “festivos”, numa narrativa escrupulosamente montada para potenciar uma experiência completa.
As introduções a solo de William Parker, mas também de Sabir Mateen, Dave Burrell ou Hamid Drake, criam momentos em que se descobrem as tais canções interiores nas estruturas de Mayfield e o duo de Sabir Mateen com Amiri Baraka foi um momento de enorme intensidade musical e emocional. Já o duo de Leena Conquest, que genericamente, nos pareceu demasiado activa e pouco eficaz, com Hamid Drake, a altíssimo nível, foi menos interessante, tendo outros momentos instrumentais com ensemble reduzido produzido efeitos mais espectaculares.
O concerto foi, assim, um momento poderosíssimo, quer musicalmente, quer politicamente. Em termos políticos terá parecido mais anacrónico que em termos musicais, eventualmente, pela perenidade inevitável de toda e qualquer retórica radicalizada e sectária, mas, também por isso, foi um momento de afirmação de coragem que convém salientar.
Assim se fazem, também, as revoluções e as suas comemorações.