É bem verdade que nem o mundo, nem o país, nem a democracia começam ou acabam no próximo domingo: a democracia, com todos os seus defeitos, tem a grande virtude de poder ser um exercício contínuo, quotidiano, em que nenhum direito civil ou político funciona por soluços periódicos— matematicamente falando, trata-se duma realidade linear e não discreta. Mas também é verdade que as eleições e, com elas, o direito e o dever de votar e o sistema de organização política do país, assente em partidos, são um momento especial, no qual se avalia a qualidade e vitalidade do sistema democrático, e o desfasamento entre a nossa organização política e a nossa organização social. Não é perfeito e podemos e devemos lutar para encontrar novas formas de organização e estratégias mais eficazes de permitir que todos os cidadãos participem mais a fundo nas decisões sobre o seu futuro individual e colectivo. Mas não creio que exista alguma incompatibilidade entre esse exercício de mudança dos nossos meios e ferramentas de acção política e a participação no escrutínio eleitoral que acontece agora.
Sejamos claros: votar não é (nunca foi), um exercício de transferência de responsabilidade. O voto não é nem um cheque em branco, nem uma procuração de plenos poderes. Nem os eleitores perdem o seu direito à acção política continuada— que passa pelo acompanhamento crítico daqueles em quem vota e de todos os outros—, nem os partidos se podem auto-proclamar depositários da confiança incondicional dos seus votantes. Votar, nestas eleições, é participar na selecção dos deputados à Assembleia da República e, com isso, condicionar o futuro político do país. Seja qual for o voto. E eleitores há muitos, como sabemos. Até há eleitores que nem pensam nada como eu e que têm uma relação pontual com a democracia.
Mas entre aqueles que não abdicam de reflectir e agir politicamente, parecem afirmar-se regularmente as dúvidas existenciais sobre a “utilidade” do voto e/ou a inexistência de alternativas credíveis. Eu compreendo essas dúvidas, mas tenho dificuldade em compreender que daí resulte uma decisão de não votar e/ou de votar branco ou nulo. Frequentemente, creio que isso acontece com pessoas que não se querem “comprometer” e que têm uma visão demasiado absoluta ou definitiva do voto. Não, não temos que concordar com tudo o que os partidos em que votamos dizem. Sim, é provável que não exista nada melhor do que um “mal menor”. Sim, é muito provável que em algumas questões que nos são mesmo muito próximas, sintamos que os partidos que nos são mais próximos não são suficientemente claros. Pode até ser saudável que assim seja. E, acima de tudo, não, o voto não nos obriga a defender um partido ou um programa. Somos cidadãos e, com isso, somos eleitores. E mesmo entre os militantes e dirigentes dos partidos, o distanciamento crítico, exercido de forma responsável, é saudável para a democracia.
Por isso, deixemo-nos de merdas. É altura de votar. É altura de afirmar inequivocamente que a abstenção é uma mensagem impossível de ler e que a escolha dos deputados que vão ocupar as bancadas da Assembleia da República nos diz respeito a todos e acontece com as nossas opções todas: votos e abstenções.