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Estetização da Política vs. Politização da Arte

“(…) quando o uso natural das formas produtivas é paralisado pelo regime da propriedade, o crescimento dos meios técnicos, dos ritmos, das fontes de energia, tende a um uso contranatura. Este uso contranatura é a guerra que, pelas destruições que arrasta, demonstra que a sociedade não tem a maturidade suficiente para fazer da técnica o seu órgão, que a técnica não está suficientemente elaborada para dominar as forças sociais elementares. A guerra imperialista, com os seus aspectos atrozes,  tem como factor determinante o desfasamento entre a existência de poderosos meios de produção e a insuficiência do seu uso para fins produtivos (por outras palavras, o desemprego e a falta de mercados). A guerra imperialista é uma revolta da técnica que reclama sob forma de «material humano» aquilo que a sociedade lhe arrancou como matéria natural. Em vez de canalizar os rios,  dirige o caudal humano para o leito das trincheiras; em vez de usar os seus aviões para semear a terra, espalha as suas bombas incendiárias sobre as cidades; no uso bélico do gás, encontrou um novo meio de acabar com a aura.
Fiat ars, pereat mundus [que se faça arte, mesmo que o mundo pereça], é esta a palavra de ordem do fascismo que, como Marinetti reconhece, espera da guerra a satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica. Aí reside, evidentemente, a perfeita realização da arte pela arte. Na época de Homero a humanidade oferecia-se em espectáculo aos desuses do Olimpo; agora converteu-se no seu próprio espectáculo. Tornou-se bastante estranha a si mesma para conseguir viver a sua própria destruição como uma fruição estética de primeira ordem. Esta é a estetização da política que o fascismo pratica. A resposta do comunismo é politizar a arte.
Walter Benjamin, in “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica” (1936)

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Lamento sobre o PCP

A minha relação com o PCP é antiga e complexa: familiares e amigos próximos são ou foram militantes, uns mais destacados que outros, e, como em muitas famílias portuguesas, há uma longa tradição de militância em parte da família e uma consequente forte ligação histórica ao partido. Por outro lado, a ligação à extrema-esquerda e ao “reviralho”, para usar vocabulário da cartilha do PC, é uma das rupturas históricas e familiares que, felizmente para mim, coube, a seu tempo, aos meus pais e eu fui educado num contexto de pluralidade, em contacto com variadíssimos tipos de “esquerdas”, “centros” e “direitas”, compreendendo as vantagens do debate político em torno de diferenças reais e tentando perceber o papel da História na evolução do pensamento e das práticas. Aprendi, muito à minha custa e fazendo o meu próprio caminho, as vantagens e desvantagens das doutrinas, a utilidade e os perigos dos partidos e das organizações políticas e fui procurando lugares de liberdade. Nunca me senti, por isso, ideologicamente próximo do PCP, mas reconheço, sem pestanejar a sua importância histórica para o país e os seus profundos alicerces “sociológicos”.
E confesso que sempre ansiei por uma evolução do discurso político do partido, por uma actualização coerente, que não o destruísse, mas o aproximasse da realidade contemporânea.

O episódio da demissão de Domingos Lopes e a reacção de Jerónimo de Sousa são, por isso, momento dolorosos e desesperantes, porque demonstram que, havendo dentro do próprio partido uma vontade de evolução e mudança, o seu funcionamento impede que tal possa acontecer sem o seu estilhaçar completo.
Porque são precisamente afirmações como as que faz Domingos Lopes, acerca do desfasamento do partido face à realidade contemporânea, que me fazem pensar no que significa, actualmente, o PCP.
Afirma Domingos Lopes:

“o PCP continua a ser o único partido no mundo que mantém o apoio à invasão da Checoslováquia, em 1969, pelas tropas do Pacto de Varsóvia, ao golpe militar da Polónia que levou Jaruzelsky ao poder, à invasão do Afeganistão pelas tropas da URSS”.

“a direcção do PCP considera, de acordo com o seu último congresso, que países como Coreia do Norte e China se orientam para o socialismo, quando o primeiro não passa de uma ditadura familiar brutal que abusivamente se apoderou do simbolismo do socialismo para o ridicularizar” e a China “emerge como uma ditadura do aparelho do partido e do aparelho militar com vista à implantação do capitalismo com o mínimo de sobressaltos sociais”.

“No plano europeu, quais são as propostas que vão no sentido de contribuir para a unidade de todas as forças europeias que se opõem a esta orientação neoliberal e belicista da União Europeia?” Para dar a resposta: “Apenas a recitação de que os destinos de Portugal se decidem em Portugal… Este solipsismo não é criador de nada. Apenas de vazio”, afirma, acusando: “A direcção do partido escudou-se numa espécie de cartilha verbalista pseudo-revolucionária, cujo objectivo principal é manter o seu poder no partido mesmo à conta do afastamento de milhares de militantes e dirigentes.”

Estas posições do partido fazem-me pensar frequentemente no real significado destas particularidades que distinguem o Partido Comunista Português de forças similares um pouco por toda a Europa. Há, inclusivamente, quem fale com uma espécie de “carinho nostálgico” acerca da resistência da veia estalinista do PC Português, mas para sermos sérios, deveríamos tentar identificar o que distingue os trabalhadores  portugueses, de quem um partido comunista se afirmará sempre legítimo representante e defensor, dos seus camaradas por essa Europa fora. Serão os trabalhadores portugueses mais fortes nas suas convicções ideológicas e por isso resistem à tentação das “derivas”? Terão os trabalhadores portugueses razões acrescidas para se solidarizarem historicamente com os dirigentes do PCUS, ou com o povo chinês ou norte-coreano? Resultam estas posições do partido comunista português duma discussão real e séria do seu significado histórico e político nos vários níveis de militância?
Eu tenho sérias dúvidas sobre as melhores respostas a dar a cada uma destas questões. E, por isso, evito pensar demasiado nisso. Mas em alturas como esta, não podemos fazer de conta que estas questões não existem.

Eu sinto, ao tentar responder a estas questões, com uma convicção crescente associada a uma angústia muito particular, que o PCP é, nos dias que correm e acima de tudo, um reflexo do atraso do país. E dum atraso muito particular, que é o atraso na educação e formação. Estruturas monolíticas como o PCP luta por manter, dependem, em grande medida de massas pouco esclarecidas, doutrináveis. E depende de quadros e elites que alternam entre o cinismo e a ingénua desinformação na qual foram criadas. O atraso na educação e formação distingue, de facto, Portugal de muitos outros países europeus e onde a educação e formação foram prioridades, a pressão das massas esclarecidas e das elites informadas deu força a movimentos de renovação a que os congéneres do PCP não poderiam resistir. Em Portugal, a afirmação de Jerónimo de Sousa, em resposta às duras críticas de Domingos Lopes, de que “sai um, entram mil”, além duma certa ilusão optimista, demonstra a confiança que os sectores mais reaccionários do PCP continuam a ter na mobilização das massas pouco esclarecidas. E isso assusta.

Para quem, como eu, acredita ser fundamental a afirmação maioritária de diferentes visões à esquerda para a construção duma melhor democracia e dum Portugal mais justo, estes sinais do PCP são muito negativos. E fico genuinamente triste, porque me estou a borrifar para os cálculos eleitoralistas que se farão à volta deste episódio e do seu timing.